Crítica: Em história de morte e traição, o que mais conta não são fatos
A narradora em primeira pessoa do romance "Os Enamoramentos", de Javier Marías, é uma editora solitária, que, na realidade, odeia os romances e os escritores.
Vive-se muito bem sem ser contemporâneo, diz Marías
"São gente esquisita, a maioria". Vaidosos, idiossincráticos, cheios de vontades inúteis --um deles lhe telefona a toda hora para consultar sobre que meias deve usar para ir a uma conferência.
Os romances, por sua vez --um deles, o "Coronel Chabert", de Balzac, é referência central--, "a gente esquece, uma vez terminados".
María, a editora, não quer ser "como os malditos livros entre os quais passo minha vida, cujo tempo está parado e sempre espreita fechado, pedindo que o abram para transcorrer de novo e narrar mais uma vez sua velha história repetida".
Por um lado, não se deve dar muita fé às opiniões de María, porque, afinal, o leitor está diante de um romance. Mas, por outro, o que ela diz vale também para si mesma como personagem e para o próprio livro que se está a ler.
Nesta história de enamoramentos, morte e traição, o que mais conta não são os fatos: terríveis, mas definidos como ficcionais. E essa ficção não está somente no fato de fazerem parte de um livro, mas principalmente em função do tipo de linguagem de que Javier Marías é uma espécie de inventor.
María, a testemunha de todos os fatos narrados, é muito mais uma especuladora, uma portadora de reflexões sobre o amor e a morte, do que propriamente uma narradora. Muitas vezes --na maioria até--, o leitor perde a noção se aquilo que está sendo contado realmente aconteceu ou se não passa de uma conjectura de María.
O ritmo da narrativa é praticamente alternado --uma fala ou ação e uma especulação. Poderia ser assim; se fosse assim, ele pensaria assim; se não fosse, ele pensaria de outra forma. E é ao longo dessas especulações que o romance se determina mais como uma história propriamente reflexiva e metalinguística, do que como uma narrativa de acontecimentos.
E os acontecimentos não são pouco excitantes: o marido de um casal tido como perfeito, sempre observado por María, é esfaqueado brutal a acidentalmente por um maluco de rua. Aos poucos, em meios a pensamentos sobre a morte e o luto, María se aproxima da viúva e de seu melhor amigo, Javier, de quem acaba se enamorando.
E enamorar-se, segundo esse último, é muito melhor do que amar: o enamoramento torna os amantes fracos, "desarma-nos perpetuamente e nos leva a nos render em todas as contendas".
Javiér está sempre atrás desse sentimento, e o romance mostra que ele é capaz de quase tudo em nome dele.
Mas outra distinção, talvez mais importante neste romance, é entre a morte e morrer. A viúva pensa obstinadamente nos momentos anteriores à morte vividos por seu marido agonizante.
Javiér acha que ela demora demais para esquecê-lo. O morto deve ficar no passado, assim como os livros. Mas, tal qual este últimos, o que conta na morte são os vivos, assim como, na leitura, o que conta é ler.
NOEMI JAFFE é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de "Quando Nada Está Acontecendo" (Martins).
OS ENAMORAMENTOS
AUTOR Javier Marías
TRADUÇÃO Eduardo Brandão
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49,50
AVALIAÇÃO ótimo
Livraria da Folha
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