Artistas africanos crescem com perspectivas democráticas e web
Eles criaram reputação com vídeos musicais malucos estrelados por uma tartaruga voadora e por um novo herói negro de aventura, considerados como a primeira sensação viral na Internet do Quênia.
Mas quando chegou a hora de escolher o tema para o vídeo da canção "Matatizo", em 2013, os músicos quenianos do Just a Band abandonaram, o surrealismo e a ironia e optaram pelas infames câmaras de tortura da Nyayo House, em seu país. Até postaram em sua página do YouTube um link para um relatório de 77 páginas sobre as vítimas de tortura sob o ex-presidente Daniel arap Moi.
"Jamais resolveremos as coisas se continuarmos a varrê-las para baixo do tapete", disse Bill Sellanga, um dos integrantes do grupo, nos bastidores de uma recente apresentação.
O vídeo político teria sido impossível na era de Moi, que manteve domínio férreo sobre o país por mais de duas décadas. O Just a Band foi formado em 2003, apenas um ano depois que ele deixou o posto, em um momento de fermentação criativa depois de anos de repressão.
Binyavanga Wainaina, escritor e fundador da revista literária "Kwani?", disse que as mudanças vão além de seu país e incluem boa parte da África subsaariana.
"O crescimento da democracia na África nos anos 90 resultou no crescimento de muitas, muitas instituições artísticas e casas de produção artística independentes", disse Wainaina, "em parte por conta da tecnologia mas também das liberdades maiores para que as pessoas imaginassem coisas por si mesmas".
Desde a era dos movimentos anticolonialistas, e passando pelas décadas posteriores à independência, sucessivas ondas de artistas africanos, quer se tratasse de escritores como Chinua Achebe e Ngugi Wa Thiongo ou de músicos como Fela Kuti e Youssou N'Dour, conquistaram influência que se estende bem além de seu continente.
Mas o crescimento das expectativas democráticas, o declínio das ditaduras, a expansão das economias africanas e a explosão da Internet e de outras tecnologias criaram novos espaços que permitem que os artistas africanos prosperem.
Revistas literárias como a "Kwani?" ou a "Chimurenga", da África do Sul, estão incubando novos escritores. A indústria nigeriana do cinema, conhecida como Nollywood, fica atrás apenas da indiana como a mais prolífica do planeta, de acordo com alguns indicadores.
Nas artes visuais, Angola conquistou o Leão de Ouro na Bienal de Veneza para o melhor pavilhão nacional, em 2013, superando favoritos tradicionais como Alemanha e França. Okwui Enwezor, nascido na Nigéria e diretor da Haus der Kunst, um museu de arte de Munique, acaba de ser apontado como diretor de artes visuais para a bienal de 2015.
A Tate Modern, de Londres, exibiu obras de Meschac Gaba, do Benin, e de Ibrahim el-Salahi, do Sudão, no ano passado. Wangechi Mutu, de Nairóbi, é tema de uma exposição em cartaz no Brooklyn Museum.
Um leilão de arte moderna e contemporânea de toda a África Oriental, em novembro, atraiu grande público e muitos compradores a Nairóbi, com peças como uma xilogravura de uma vaca com um código de barras, trabalho do jovem artista queniano Peterson Kamwathi. As obras estão em curso para converter uma antiga biblioteca no centro da capital queniana em um museu de arte contemporânea, que deve ser inaugurado este ano.
Restrições significativas à imprensa e às liberdades civis continuam a existir em muitos países, mas a confluência entre uma maior liberdade de expressão, em termos gerais, e o potencial da Internet como professora, como guia e como promotora, significa que artistas africanos podem atingir e atrair novas audiências. O Just a Band tocou na TedGlobal em 2013 e se apresentou no festival South by Southwest em Austin, Texas. O Google os define como uma história de sucesso "conectado" africano.
Centenas de pessoas lotavam um armazém no centro de Nairóbi em uma recente noite de sexta-feira. O DJ era Daniel Muli, do Just a Band. O terceiro integrante do grupo, Mbithi Masya, era o curador de uma instalação em vídeo exibida na parede dos fundos, com trabalhos seus e de Mutu.
A plateia, jovem e elegante, estava lá para ver a premiada romancista nigeriana Chimamanda Ngozi Adidie apresentar seu mais recente livro, em companhia da escritora queniana Yvonne Adhiambo Owuor.
"Dust", de Owuor, que ela estava lançando naquela noite, é um trabalho candente sobre o assassinato de um jovem queniano, passado em sua maior parte durante a onda de violência que se seguiu à eleição de 2007, mas com trechos que se estendem à revolta dos Mau-Mau contra o domínio britânico do país, em 1957.
"Há algo de realmente emocionante sobre as perguntas que os quenianos se fazem por meio de suas obras", diz Ellah Allfrey, editora e crítica literária nascida no Zimbábue e radicada em Londres, que estava em Nairóbi para o evento. "Não se trata apenas de celebrar o passado e emular o que está acontecendo em outros lugares".
Owuor disse que era especialmente empolgante publicar seu primeiro romance no 50º aniversário da independência do Quênia.
"As coisas estão sempre em movimento, sempre em convergência, sempre algo de novo", disse Owuor, em referência à nova arte visual e conceitual. Ela classificou o Just a Band como "muito Nairóbi", e disse que "de muitas maneiras, eles representam a pulsação da cultura".
No final de semana passado, o grupo se apresentou acompanhado por uma banda de sete instrumentistas no festival musical Blankets & Wine, no Carnivore Gardens de Nairóbi. Sellanga, o elegante vocalista, usando um smoking e um chapéu de abas largas, estimulava a audiência a acenar com as mãos e a cantar com ele.
Os membros do grupo se conheceram na Universidade Kenyatta, em Nairóbi, onde começaram a produzir uma eclética mistura de música eletrônica e hip-hop, com claras influências locais.
Eles cresceram ouvindo Michael Jackson e extraem inspiração de tradições tão diversas quanto o mangá japonês e a mitologia africana. Uma conversa com a banda pode se estender dos cubos energon que propelem os robôs dos Transformers a planos para navegar Nilo abaixo com grupos musicais de todos os países cujos territórios o rio percorre.
O primeiro álbum do Just a Band foi lançado em 2008, mas não foi sucesso nas rádios locais. Eles produziram o vídeo da canção, "Iwinyo Piny", com Muli desenhando a tartaruga gigante que flutua sobre Nairóbi, carregando um DJ nas costas. Os membros do grupo são em geral autodidatas, usando vídeos de instrução do YouTube para aprender novas técnicas, entre as quais a animação.
"Você entra online e encontra alguma maneira de experimentar, fracassando da primeira vez, mas em algum momento você aprende", disse Muli.
Os vídeos criativos se tornaram uma das marcas registradas do grupo.
Um deles, intitulado, "If I Could", mostra um homem e uma mulher, cada qual em sua metade da tela, tocando a vida cotidiana —escovando os dentes, tomando café da manhã, se vestindo para o trabalho— e depois um encontro entre eles que não acontece por margem ínfima. Era parte de uma instalação em vídeo exibido no Instituto Goethe de Nairóbi, que ajudou a solidificar sua reputação como artistas visuais, e não só musicais. A segunda instalação deles foi exibida na Rush Arts Gallery, em Nova York.
Em 2010, o Just a Band lançou o vídeo para a canção "Ha-He", estrelado por um protagonista durão chamado Makmende, que parecia transplantado a Nairóbi direto do filme "Shaft". O vídeo mudou a trajetória do grupo, que antes era uma banda local com seguidores leais mas depois do vídeo se tornou mais conhecido internacionalmente, sendo assistido mais de 500 mil vezes no YouTube.
Temas políticos já tinham surgido em seus vídeos, como na canção "Usinibore", na qual policiais batem com seus cassetetes contra os escudos de proteção enquanto se preparam para um confronto contra jovens e contra dançarinos de máscaras brancas. Depois veio o vídeo de "Matatizo", em 2013, mostrando as câmaras de tortura.
"Passamos por algumas ideias melancólicas, mas a maioria delas pareciam forçadas; como se estivéssemos roteirizando uma falsa tristeza", diz Masya, 27, co-diretor e operador de câmera do vídeo. Em lugar disso, eles optaram por tratar de acontecimentos reais. "Decidimos revisitar um dos momentos mais tristes de nossa História".
O vídeo foi gravado em uma academia de ginástica suja e abandonada, no prédio de um amigo,com sacos de lixo colados às janelas para bloquear a luz. O projeto acabado parece uma cena de uma versão queniana de "A Hora Mais Escura", com a camiseta da vítima manchada de sangue enquanto ela sofre convulsões causada por choques elétricos. Mas a cena deixa a tortura e mostra o sol brilhante, sugerindo a forma que a vida pode tomar em uma sociedade aberta.
"Existe uma certa sinceridade e inocência no Just a Band que me sugere o que imagino tenham sido os anos 60, quando todo mundo achava que tudo era possível", diz o escritora Wainaina.
Durante uma agitada apresentação ao vivo recente, o Just a Band tocou "Usinibore." Sellanga usava uma gigantesca peruca em estilo afro, um agasalho com capuz no qual se lia "África é o Futuro", e tocava uma guitarra Fender preta com escudo branco.
"Só porque sou um africano de pele negra, isso não significa que não vá vencer, se tentar", ele cantou. "Não me diga o que posso e não posso fazer", o refrão da música afirma. "Posso mudar o mundo".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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