CRÍTICA
'O Pequeno Quinquin' mostra as muitas contradições da Europa
Tudo é um pouco estranho em "O Pequeno Quinquin". A começar do fato de que o diretor Bruno Dumont o projetou como uma série para a TV francesa, mas o filme, lançado durante o Festival de Cannes de 2014, fez um sucesso louco com a crítica do país.
Como resultado, temos aqui um filme tão longo (tem três horas e 20 minutos) quanto surpreendente. Estamos numa cidade ao mesmo tempo agrária e costeira do nordeste da França, onde estranhos crimes começam a acontecer.
Em torno deles, mais do que em seu centro, encontram-se algumas crianças, o jovem Quinquin à frente. Do lado oposto, um burlesco par de policiais comanda uma investigação que, a cada momento, parece conduzir menos a algo.
Divulgação | ||
Da esquerda para a direita, os atores Lucy Caron, Corentin Carpentier (esq.) e Alane Delhaye(dir.), em imagem de divulgação do filme "O Pequeno Quinquin", de Bruno Dumont |
É isso que faz, em boa parte, o encanto desse filme: sua capacidade de produzir o inesperado.
Seja pelos crimes propriamente ditos, seja pela atitude corrosiva das crianças, ou ainda pela inépcia dos policiais, nos encontramos diante de enigmas que, em vez de se dissiparem, tornam-se a cada volta mais resistentes.
E aos poucos notamos que, aos poucos também, o filme se afasta de seu objeto declarado (a cidade, os habitantes, os crimes) para se afirmar como mistério em si, da própria existência, das pessoas envolvidas nele.
Nesse sentido, vale a pena reencontrar alguns trechos da entrevista do filósofo Jacques Rancière aos "Cahiers du Cinéma": "Eu não ri [com o filme], mas achei interessante a relação entre a brutalidade dos corpos e dos pensamentos, a brutalidade natural das crianças, e sua disposição à ternura... O trabalho sobre os afetos escapa ao discurso previsível".
Essa "brutalidade dos corpos", da gestualidade, do silêncio, não se restringe, aliás, às crianças.
Ela define um pouco a relação tão tensa entre o europeu (aqui o francês da "França profunda") e o estrangeiro: uma espécie de recusa de receber tudo que lhe seja estranho.
Esse fechamento sobre si mesmo não deixa de nos introduzir à dificuldade que têm essas velhas culturas em conviver com o que vem de fora (imigrantes africanos, por exemplo). Algo tragicamente atual.
Ali onde Rancière identifica os "corpos opacos" com seus gestos estranhos, um pouco selvagens, pode-se dizer que esses corpos nos conduzem por um fio delicado às muitas contradições dessa Europa hoje unida e como que hostil ao mundo exterior.
É diante disso que os dois policiais (atores amadores e excelentes, diga-se) surgem como dois tolos personagens burlescos, que buscam encontrar um sentido e uma ordem para aquilo que já não faz sentido. Coisa também tragicamente atual.
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