Franceses encenam situações absurdas e ridículas em peças de Ionesco
Eugène Ionesco (1909-94) nasceu de ambiguidades. De pai romeno e mãe francesa, cresceu entre os dois países. Assistiu com horror ao alinhamento do pai a ideologias fascistas e totalitárias e se viu mergulhar num universo de solidão e angústia.
Mas o dramaturgo encontrou, nesse seu palhaço triste no meio do picadeiro, um bufão: um talento para retratar com humor o ridículo das situações banais e a insignificância da existência humana.
Influenciados por artistas surrealistas e pela obra do tcheco Franz Kafka, Ionesco foi considerado, ao lado de Beckett, um dos pais do teatro do absurdo, ainda que fosse avesso ao termo.
"Ele dizia que o que Beckett e ele criaram era um teatro sobre a vida e que o absurdo não é o teatro, mas a vida que se torna absurda", diz, em entrevista à Folha, o franco-português Emmanuel Demarcy-Mota, diretor do Théâtre de la Ville de Paris.
Ele e a companhia da casa francesa fazem a primeira passagem pelo Brasil e encenam em São Paulo, a partir desta sexta (5), duas montagens de textos de Ionesco.
Trabalho mais aclamado do coletivo francês, "O Rinoceronte" (de 1959), traz resquícios do trauma da Segunda Guerra Mundial e do impacto do nazismo na Europa.
A parábola se passa em um vilarejo no qual todos os habitantes se transformam, aos poucos e inexplicavelmente, em rinocerontes. Todos menos um: Bérenger.
"Ele representa a nossa capacidade de resistir", comenta o diretor. Bérenger, no entanto, não é um herói. Tem dúvidas sobre a vida e, a partir de sua angústia, constrói um pensamento não uniformizado, diferente dos demais, que temem o sistema.
"Ionesco é um provocador, nos faz pensar de maneira diferente, mas é uma provocação feita com ironia e humor." A força do autor estaria, então, na mescla entre o dramático e cômico, de nos fazer perceber as nossas angústias e, ao mesmo tempo, termos a capacidade de rir.
Nesse sentido, relata o diretor, a peça espelha um tema muito atual. "Vivemos, na Europa e em outras regiões, não apenas uma crise econômica, mas também uma crise de valores humanos, com a subida novamente de partidos fascistas e de grupos extremistas, com dificuldade em aceitar as diferenças."
Para o encenador, é nesse contexto que a arte desempenha um papel importante: o de resgatar os valores perdidos da sociedade. "A liberdade criativa é um ponto fundamental da democracia."
O SOLITÁRIO
Esta montagem de "O Rinoceronte" é a segunda versão feita pelo grupo –a primeira é de 2004. Sete anos depois, o espetáculo reestreou com algumas modificações, entre elas a inclusão de trechos do romance "O Solitário" (1973), também de Ionesco.
O livro foi o ponto de partida do outra espetáculo que o Théâtre de la Ville apresenta em São Paulo: "Ionesco Suite" (2005), uma colagem de cinco trabalhos do dramaturgo ("Jacques ou a Submissão", "Delírio a Dois", "A Cantora Careca", "Exercícios de Conversação e Dicção Francesa para Estudantes Americanos" e "A Lição").
"Depois de 'O Rinonceronte', pedi ao elenco que continuássemos a nossa pesquisa sobre Ionesco. A partir de improvisações sobre os textos, falamos sobre a solidão e a dificuldade de comunicação", explica Demarcy-Mota.
Os personagens vivem momentos de socialização, em cenas como um jantar ou um casamento. Mas da convivência surgem desacordos e reações violentas.
"Há muita ruptura. Da linguagem, com desconstrução das falas, e de personagens. Como, por exemplo, grandes amizades que se destroem por um desacordo pequeno."
Diferentemente de "O Rinoceronte", "Ionesco Suite" traz ambientação mais intimista, com o público muito próximo da cena, quase dentro dentro do palco.
"Há uma proximidade muito grande, e o espectador está ali não só como coletivo, mas também como indivíduo", comenta o encenador.
"Ionesco já foi muito montado por seu aspecto de absurdo, mas queríamos ressaltar a humanidade de seu teatro e como a obra se expressa por meio do corpo do ator."
THÉÂTRE DE LA VILLE DE PARIS
QUANDO "O Rinoceronte": sex. (5) e sáb. (6), às 21h, dom. (7), às 19h. "Ionesco Suite": sáb. (6), às 18h, dom. (7), às 16h
ONDE Sesc Pinheiros, r. Paes Leme, 195, tel. (11) 3095-9400
QUANTO R$ 12 a R$ 40 ("Ionesco Suite") e R$ 18 a R$ 60 ("O Rinoceronte")
CLASSIFICAÇÃO 14 anos
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