CRÍTICA
Passado segue como cerne da escrita sofisticada de Modiano
A Fundação Nobel, ao conceder o prêmio de literatura de 2014 ao escritor francês Patrick Modiano, encontrou uma fórmula mágica para defini-lo. Chamou-o de "Marcel Proust de nosso tempo".
A definição, certamente baseada na importância da memória e da reminiscência para os dois autores, correu o mundo. Boa parte da imprensa a adotou como bordão e uma quase justificativa para o fato de um escritor tão avesso à mídia, tão reservado e tão pouco lido fora da França ter ganho o Prêmio Nobel.
Entretanto, entre os franceses Proust (1871-1922) e Modiano (1945) não há apenas uma óbvia distância: há também uma complicada diferença no trato da memória.
E foi o próprio Modiano quem se encarregou de desmontar o clichê, no seu discurso na entrega do Nobel: "A memória de Proust faz o passado ressurgir nos menores detalhes (...). Tenho a impressão de que, hoje, a memória está muito menos segura dela mesma e deve lutar sem cessar contra a amnésia e o esquecimento".
José Rodríguez/Xinhua | ||
Patrick Mondiano em 9 de outubro, quando ganhou o prêmio Nobel 2014 |
Como nos demais livros do autor, esse embate entre memória e esquecimento é o tema de "Para Você Não Se Perder no Bairro" (2014), recém-lançado no Brasil em ótima tradução do escritor paulistano Bernardo Ajzenberg.
No romance, o passado ressurge a duras penas e sempre lacunar, indecifrável, cercado de sombras. A memória, involuntária ou não, é um instrumento avariado, que já não presta direito à evocação, pois é atingida por trauma, ignorância e "amnésia voluntária", como diz o protagonista da trama, Jean Daragne.
Escritor misantropo (e talvez alter-ego do autor), Daragne é sumariamente empurrado para fora da toca narcísica e confrontado com um episódio de sua infância, nos anos 1950.
DETETIVE E VÍTIMA
Avançamos na leitura como se acompanhássemos a investigação de um "mistério" ou até de um "crime", do qual Daragne seria simultaneamente detetive e vítima.
Tudo, porém, escapa à elucidação. Do passado, não restam senão nomes intercambiáveis, espectros furtivos e velhos endereços, que são como pontos de apoio na "areia movediça" da memória.
Assim, a escrita, embora de concisão e objetividade impressionantes, trafega sobretudo pelo incerto e o duvidoso, entre suspeitas e silêncios.
O leitor espera um arremate redentor na trama. Mas isso não ocorre e as lacunas permanecem abertas. É como se, insolúvel, o enigma do passado fosse a própria substância da literatura sofisticada e discreta de Modiano.
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