CRÍTICA
Em 'Boi Neon', Gabriel Mascaro mostra direção mais consistente
Bichos e homens parecem feitos da mesma matéria nervosa em "Boi Neon". Estranha, a força desse novo filme de Gabriel Mascaro está tanto na desconstrução dos estereótipos que rondam o universo nordestino quanto no que beira um elogio às avessas de sua natureza agreste.
No centro desse retrato está Iremar, vivido por Juliano Cazarré, que trabalha asseando os bois das vaquejadas, torneios em que caubóis tentam derrubar o bicho com puxões no rabo. Nas horas vagas, ele sonha em ser estilista, rabiscando modelitos sobre os corpos de garotas em revistas pornô –suas criações depois debutam em shows eróticos entre brigas com os touros.
Nunca o confinamento, tanto o dos bois entre as cercas do campo quanto o das mulheres debaixo da pele artificial de suas roupas justíssimas, pareceu tão exuberante.
Divulgação | ||
Juliano Cazarré em cena do filme brasileiro 'Boi Neon', dirigido por Gabriel Mascaro |
Mascaro, que estreou no cinema há quatro anos com "Doméstica", documentário em que patrões foram convidados a filmar a rotina de suas empregadas, vem se firmando como um dos nomes mais ousados da leva de diretores que despontaram na última década no Recife, onde nasceu.
"Ventos de Agosto", lançado há dois anos, foi seu primeiro longa com maiores ambições estéticas. É um filme problemático em que enredo e roteiro parecem perder o fôlego, afogados na beleza plástica de um romance retratado à luz da ferrugem de facões.
Mais firme na condução de "Boi Neon", Mascaro se mostra aqui um poderoso arquiteto visual. Vistos sempre emoldurados por cercas, barreiras e limites, seus personagens parecem tão encurralados por convenções sociais quanto os bois enclausurados no curral.
Numa performance contida, quase monocórdica, Cazarré e sua cara amarrada surgem como a tradução visual de um mundo em transe, o campo rude habitado por homens que tentam se distanciar de uma ideia de sujeira ou violência primordial do sertão –o cheiro de esterco mascarado com perfume.
Daí os fortes paralelos entre as sequências dos bois sendo preparados para a vaquejada e homens que se penteiam –Junior, personagem de Vinicius de Oliveira, vive alisando seus longos cabelos.
Outra cena mostra os caubóis, todos nus, enquanto se lavam depois do manejo dos bichos. Orquestrada de forma milimétrica, lembra as pinturas de banhistas, tema clássico na história da arte, só que transfigurado aqui com uma geometria menos angulosa e mais orgânica.
Contraponto aos peões delicados, Galega, a dançarina vivida por Maeve Jinkings, tem uma atitude mais máscula, comandando as cenas em que aparece, como quando transa de pé com Junior no meio dos bois.
Nesse sentido, é nítido o caminho trilhado por Mascaro –uma espécie de rota da dissolução de estereótipos de gênero, que ganha ainda mais força no terreno carregado do campo nordestino.
Os longos planos do filme, às vezes incômodos ou anticlimáticos, conduzem essa desconstrução dos papéis do homem e da mulher. Diálogos esvaziados, quase grunhidos, ou falas um tanto banais formam a retaguarda dessas sequências, criando um contraste com a visão viciada da pele dos homens e dos animais em primeiríssimo plano.
Essa tensão entre o dito e o visto é talvez o fator mais elétrico de "Boi Neon". Dá o tom desse delírio naturalista.
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