CRÍTICA
'Macunaíma' em quadrinhos é antropofágico a seu modo
Em um trecho metalinguístico de sua adaptação de "Macunaíma" para os quadrinhos, os autores Angelo Abu e Dan X decidem que vão evitar referências à versão cinematográfica do livro, de 1969, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade e que tinha Grande Otelo no papel principal. Para compor o protagonista, Abu e X inspiram-se em várias referências, tais como patuás, a pintura de Di Cavalcanti e o épico "Ramáiana".
O resultado foi um indiozinho com "olhões de sagui desmamado" e "buchinho estufado". Quando um dos quadrinistas mostra o protótipo à esposa, o comentário dela os desespera: "A cara do Grande Otelo!"
O desespero logo passa, pois eles veem que o processo é inevitável. "Macunaíma em Quadrinhos" é antropofágica tal qual a obra literária em que se baseia: engole várias referências, mastiga-as e "guspe" –como no linguajar do livro original– um panorama de histórias alinhavado apenas pela fantasia típica do folclore.
Divulgação | ||
Trecho da adaptação da obra de Mário de Andrade |
A diferença em relação ao original, evidentemente, é que na adaptação estas histórias são contadas pelas imagens desenhadas, de forma que as referências que os autores precisam engolir são, sobretudo, visuais.
A versão para o cinema, apesar do comentário da primeira leitora, não é o prato principal dos autores. Suas referências mais aparentes são a pintura modernista: não apenas Di Cavalcanti ou Anita Malfatti –colegas de Mário de Andrade na Semana da Arte Moderna de 1922–, mas também Tarsila do Amaral, Diego Rivera e Pablo Picasso.
Como é esperado das adaptações, a versão em quadrinhos também mastiga o texto original e "guspe" trechos. A HQ tem três capítulos a menos que o livro, mas preserva a narrativa principal. Os primeiros capítulos estendem-se para contar o nascimento e os primeiros anos de Macunaíma. A viagem do protagonista a São Paulo com os irmãos Maanape e Jiguê, para reaver a pedra Muiraquitã do mascate Venceslau Pietro Pietra, é o cerne da HQ tal qual o livro.
Outra característica que o quadrinho preserva com enorme fidelidade em relação ao original é o linguajar adotado por Mário de Andrade, que mescla o português culto a termos do tupi e do tupi-guarani, assim como escrita fonética e outros recursos.
MÚLTIPLOS ESTILOS
O que é particular ao quadrinho é a variação no estilo de desenho, que toma rumos diversos ao longo das páginas. Embora alguns capítulos mantenham um grafismo consistente, há cenas como a em que Macunaíma e Maanape chegam ao tejupar de Pietro Pietra, nas quais tem-se a impressão que as páginas foram desenhadas por quatro ou cinco artistas. A impressão pode ser intencional, mas causa certa estranheza.
Mário de Andrade dizia que havia escrito "Macunaíma" em seis dias. Os autores da adaptação certamente levaram mais tempo –e, com a obra pronta, tiveram que esperar meio ano pela entrada do texto em domínio público, no início de 2016. O resultado é uma interpretação visual nova e interessante da obra, a começar pela belíssima ilustração de capa e quarta capa.
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