CRÍTICA
Escritos de Sebastião Uchoa Leite são repletos de contrapoderes
Sebastião Uchoa Leite, morto em 2003, é um poeta de destaque no cenário da literatura brasileira recente. "Poesia Completa" traz os dez livros que publicou a partir de 1960, acrescidos de poemas dispersos. Além de dar uma visão de conjunto, a reunião permite que novos leitores entrem em contato com livros decisivos e há tempo esgotados, como "Antilogia" (1979), "Isso Não É Aquilo" (1982) e "A Ficção Vida" (1993).
O universo dessa poesia lança mão de tipos conhecidos: vampiros, detetives, ilusionistas, assassinos. Em todos eles, está em jogo uma dualidade que não se oferece de forma estanque, sendo impossível separar quem persegue de quem é perseguido. As figuras do médico e do monstro –citadas pelo poeta– resumem bem essa condição.
Alexandre Campbell/Folhapress | ||
O poeta e tradutor Sebastião Uchôa Leite, morto em 2003 |
Marcante também é o encontro entre leitor e autor, personagens que em poesia, desde Baudelaire, têm uma fraterna e tensa relação. Na obra de Sebastião, tal conversa é atualizada de forma irônica por meio de alguns recursos. Por exemplo, desconcertantes conselhos ("Se vais encontrar o fraco/ Não te esqueças/ De levar o chicote").
Seguindo esse jogo, os poemas tocam os limites da ficção, a partir da dinâmica envolvendo antídoto e envenenamento. Com isso, possíveis diferenças entre o texto e o fato acabam se esfumaçando, tanto que, em certo momento, o poeta anota: "Há aqui um remoto/ Veneno inoculado".
Tal inoculação produz metamorfoses. Uma delas, a aproximação entre a voz do poema e a figura do autor. É assim que, brincando com o método cartesiano, o poeta diz: "Eu mordo/ Logo posso". Em outras palavras, ao se tornar personagem de si mesmo, ele se vê ao mesmo tempo como vítima e algoz.
Usando o verso curto e a prosa, o poeta trabalha com tópicos recorrentes da tradição moderna –como fingimento e antilirismo– menos para confirmá-los do que para deslocá-los. Uma voz incógnita, então, se faz ouvir, espécie de "infra-herói" com "vários contrapoderes". Entre eles, está uma sorrateira e espirituosa habilidade para a apropriação do alheio.
Nesse sentido, os melhores poemas de Sebastião dialogam tanto com paradigmas construtivistas quanto com modos mais coloquiais e prosaicos. Mas sua poesia realiza isso sem se identificar inteiramente com nenhum desses modelos. Assim, ela acaba por redimensioná-los quando incorpora –temática e formalmente– a cultura pop, o cinema e os quadrinhos.
Obra carregada de uma coerência múltipla, ela se movimenta com contradições e paradoxos. Em determinado texto, lemos: "Se você pensa/ que poesia é escamoteação,/ acertou". Noutro, a mensagem parece dizer o inverso: "Artistas perfeitos/ não precisam/ ocultar pistas". Para quem ficou com dúvida se as coisas devem ser escondidas ou não, outro poema de Sebastião responde. E essa resposta talvez seja uma das mais sensatas observações que a poesia contemporânea fez: "quem não se contradiz/ não diz/ radicalmente sério/ só o cemitério".
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LEIA TRECHO
Extraído de "Poesia Completa"
Um cadáver e um dossiê:
suspense italiano
de eminentíssimos cadáveres.
Eles afirmam
que irão até o fim
até chegar ao dedo
que apertou o gatilho.
Já se sabe o fim do filme:
antes do cadáver
já se conhecia o dedo.
Só não se sabe como ocultá-lo.
O único mistério é:
Por que fazê-lo?
Moral:
Artistas perfeitos
não precisam
ocultar pistas."
LEONARDO GANDOLFI, poeta e professor de literatura portuguesa na Unifesp, é autor de "Escala Richter" (7letras).
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