análise
Caetano, de baiano a odara
Dias atrás Caetano Veloso comparou as manifestações de abril passado às passeatas de apoio ao Golpe de 64. Ele mesmo, ao vivo e em cores, em 1992, defendeu o então presidente Fernando Collor, que seria abatido meses depois.
Na pesquisa para montar meu documentário "Não Estávamos Ali Para Fazer Amigos", sobre os anos finais da ditadura, a "Ilustrada" e a cultura brasileira, me deparei com uma declaração do idêntico Caetano contra uma crítica negativa de Caio Túlio Costa ao seu épico "Cinema Falado". "Isso é porque eu sou foda, Gil é foda, Djavan é foda...". (Sobre Djvan eu concordo: o amor é azulzinho!)
Como a legislação exige, lá fomos nós pedir autorização ao Caetano Veloso de sempre. Ele negou. Mandou dizer por intermédio de sua assessoria que não queria participar do projeto.
Ao não permitir que meu documentário registrasse sua declaração pública de reação a uma crítica negativa ao seu trabalho, o costumeiro Caetano Veloso agiu como censor. Tratou de reescrever a história. Ou de tentar apagá-la: "Não me puna por essas manchas no meu passado/ Já passou, esses rapazes são apenas meus amigos", cantaria Ney Matogrosso.
Os problemas são Caetano e a legislação brasileira de direitos autorais. Ao usar sem autorização uma imagem, abre-se a possibilidade de um processo monstro. O realizador escolhe entre arriscar ou deixar a história incompleta. E assim a história, no Brasil, ao menos a contada pelo cinema, ganha os contornos de papai-e-mamãe, um quê odara, alegre e azulzinha.
"Citizenfour", de Laura Poitras, sobre o affair Edward Snowden-EUA, seria quase impossível de ser realizado na Terra Papagalis. Ia todo mundo preso. Até o trilheiro.
A legislação e personagens como o presencial Caetano Veloso podem explicar por que boa parte do cinema documentário brasileiro é a favor. Bonzinho. Tieta-eta. Caso eu queira filmar a história da Lava Jato, a partir das leis de incentivo, terei de pedir carta de concordância a Marcelo Odebrecht, a Fernando Baiano e a José Dirceu (entre outra penca de curitibanos)? Se não derem um ok, nada feito? Pode surgir um processo aí.
A coisa vale para o incensado também: deu um treco em um diretor, e ele quer contar positivamente a evolução celular de Lulu Santos, chamando-o de meu bem –terá de conseguir o ok da belezura? Parece que sim. Caso contrario, não poderá se sentir uma mola encolhida!
O caso de Caetano Veloso é algo mais sério. Por vários anos ele foi protegido na "Ilustrada" da década de 1980. Ele era ojerizado pela esquerda do partidão. Minha geração (até eu, bato no peito: basta ver o arquivo do caderno) abriu espaço às suas ideias, então inovadoras.
É certo que nós o usávamos (e ele a nós, é claro): sempre que queríamos algo controverso, do contra, bastava ouvi-lo. Ele cumpria velosamente seu papel de bom ventríloquo.
Até que Paulo Francis o atropelou, chamando-o de ET baiano e maltrapilho. É que Veloso havia babado um ovão diante de Mick Jagger. Francis o ridicularizou. E Caetano retrucou, chamando-o de bicha travada numa entrevista dada a mim. Bicha travada? Huumm, isso não soou bem em 1984 e muito menos agora. Ou os companheiros do grelo duro deixam barato?
Depois veio "Cinema Falado", algo tão ruim quanto um fim de tarde com Marta Suplicy. Caio Túlio Costa desmontou o filme. Caetano estrebuchou. Eu queria mostrar esse estrebucho, com o intuito de contar uma história. Registrar as dores de amores. Ele não deixou. Vetou. Quis travar a história. A vantagem, segundo Caio conta no documentário, é que por conta da crítica ele nunca mais fez nenhum outro filme. Não é uma boa história? Ou não.
Miguel De Almeida, editor e escritor, é co-diretor do documentário "Não Estávamos Ali para fazer Amigos".
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