Crítica
'O que Está por Vir' desfia descompasso em várias camadas
A chegada de "O que Está por Vir" no final de um ano lembrado pela desesperança reafirma a vitalidade que os filmes podem exercer sobre seu tempo. O longa, premiado como melhor direção para a francesa Mia Hansen-Løve no Festival de Berlim deste ano, reverbera questões equivalentes às postas por "Aquarius", como o anacronismo e a dissintonia.
Outro tema comum aos dois longas encontra-se na ênfase que ambos dão às experiências de transmissão, ao que pode passar adiante ou se perder enquanto envelhecemos.
Tanto como a Clara de "Aquarius", os movimentos da professora de filosofia Nathalie Chazeaux dão consistência à personagem e permitem atestar um estado do mundo. Ambas são manifestações acentuadas de crises, movem-se em meio a ruínas, buscam abrigos para seguir adiante. Por isso, encarnam tanto o ideal de resistência.
No papel central, Isabelle Huppert proporciona normalidade e veracidade à personagem, num desempenho de intenso contraste com o da mesma atriz em "Elle".
A visita de Nathalie e família ao túmulo do escritor François-René de Chateaubriand na cena de abertura demarca a personalidade da protagonista e anuncia o descompasso que o filme desfia em múltiplas camadas.
Sozinha no plano, a personagem lê uma placa que pede silêncio ao visitante em respeito ao desejo do escritor, de "repousar ali para escutar somente o mar e o vento". Entediada com o programa, a filha insiste para irem embora, pois a maré está subindo e ela "não quer dormir com Chateaubriand".
A dissintonia entre o que move cada um e o sentimento de fim do prazo de validade em relação à aceleração do mundo são as duas questões que o filme representa evitando o enfadonho discurso nostálgico.
O fim do casamento de Nathalie integra o mesmo contexto de dissoluções e de ultrapassamentos que também inclui o modelo rígido de seus livros didáticos e da perda de autonomia de sua mãe depressiva.
Já a luta política dos jovens na escola, a criação de um site de filosofia ou a experiência de vida alternativa de seu pupilo Fabien são vistas da perspectiva da reinvenção.
A extinção de seu mundo é reiterada no momento em que Nathalie descobre a tradução da obra de Günther Anders, "A Obsolescência do Homem", título mais que eloquente.
Entretanto, o pessimismo ativo da personagem impede que ela se consuma num tipo de crítica baseada na recusa, recurso de defesa dos ranzinzas. A perda de laços não a empurra para o bunker. Ao contrário, força sua reabertura para o mundo.
Em "Eden", longa anterior e mais pessimista de Hansen-Løve, a crise afetava um jovem DJ fascinado pelo hedonismo, mas que um dia tem de cair na real. Como um irmão antípoda, "O que Está por Vir" (belo título brasileiro) devolve o que se perdeu neste ano nefasto.
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