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Hilda Machado mostra habilidade de se mover por meio de justaposições drásticas

Livro póstumo, 'Nuvens' reúne a produção da autora, trazendo textos antes publicados em revistas e outros inéditos

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Nuvens

  • Preço R$ 36 (96 págs.)
  • Autoria Hilda Machado
  • Editora 34

"Nuvens", de livro póstumo Hilda Machado organizado por Ricardo Domeneck, reúne a produção da autora, trazendo textos antes publicados em revistas e outros inéditos, datados entre meados dos anos 1990 e 2005, ano próximo de sua morte.

A escritora Hilda Machado, nos anos 1970
Em foto dos anos 1970, a poeta, professora e cineasta Hilda Machado, que tem seu livro ‘Nuvens’ publicado pela 1ª vez - Beatriz Albuquerque/Divulgação

O primeiro poema apresenta já uma marca crucial do livro: a habilidade de se mover por meio de justaposições drásticas.

Nele, um cômodo se torna um espaço que se equilibra entre duas dimensões, uma que é cenário, outra que é texto: "a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos" e "perífrases sobre o paninho de crochê". Não sem ironia, aspectos físicos dos objetos misturam-se aos bastidores textuais: "o sofá combinando com o tom das exegeses".

É como se na poesia de Hilda houvesse um tipo de passagem de nível que aproximasse planos distintos. Por exemplo, no mesmo apartamento fechado, ela apresenta a imagem aberta do "céu no chão da minha sala", em que a amplidão se instala como fenda na superfície do piso.

Por falar em céu, o título do livro, depois de Baudelaire ("Amo as nuvens... as nuvens que passam... longe... as maravilhosas nuvens"), mais do que nomear um estado etéreo, fala de nuvens em deslocamento cobrindo superfícies: "6:30 da manhã / envolto em tule / o Itaim-Bibi". Isso, sem falar das nuvens que tomam de assalto o céu, tornando-o fechado.

Indo do céu ao mar, o poema intitulado "Azul" cria mais correlações ao justapor itens que são dessa cor, desde o "manto de nossa senhora", passando pelo "papel de Bis" (o chocolate) até chegar a um "galeão afundado em mar de cromakey".

Aliás, esse efeito especial de vídeo diz algo sobre a escrita dessa autora que também era cineasta. A justaposição, em seus versos, pode ser tão intensa que se torna superposição.

O cromakey é uma técnica de gravação que sobrepõe duas imagens por meio da anulação da cor padrão, no caso, o azul. E que tal pensar que a poeta adapta esse efeito aos poemas? A utilização se daria quando uma imagem, muitas vezes já partida, passasse por cima de outra, dando a ver dissemelhança e instabilidade.

Nesse sentido, sua escrita guarda alguma distância de paradigmas poéticos como o da despersonalização ou o do testemunho lírico. Autoirônica, a obra apela mais para a montagem e para a passagem, ao fazer uso decisivo do fluxo e da interrupção. Acabam ganhando destaque diversos andamentos, vozes e registros.

Flora Süssekind, em “Ego trip: uma pequena história das metamorfoses do sujeito lírico”, ao abordar certo cenário contemporâneo, afirma que o eu – distante já de projetos estéticos da modernidade como o do fingimento – se apresentaria mais como ameaça e laceração, “pedaços de egos”. Parece que a poesia de Hilda Machado, com sua fugacidade e força incisiva, não é nada estranha a tal diagnóstico.Por exemplo, no poema “Miscasting” lê-se: “estou entregando o cargo / onde é que assino”. Nele, entregar o cargo, o de atriz de um papel, quebra um pacto, mas imediatamente propõe outro ainda mais provocador, o da assinatura como convite ao desconhecido: “feliz ano novo / bem vindo outro / como é que abre esse champanhe / como se ri”.  

Flora Süssekind, em “Ego trip: uma pequena história das metamorfoses do sujeito lírico”, ao abordar certo cenário contemporâneo, afirma que o eu – distante já de projetos estéticos da modernidade como o do fingimento – se apresentaria mais como ameaça e laceração, “pedaços de egos”. Parece que a poesia de Hilda Machado, com sua fugacidade e força incisiva, não é nada estranha a tal diagnóstico.
 

Por exemplo, no poema “Miscasting” lê-se: “estou entregando o cargo / onde é que assino”. Nele, entregar o cargo, o de atriz de um papel, quebra um pacto, mas imediatamente propõe outro ainda mais provocador, o da assinatura como convite ao desconhecido: “feliz ano novo / bem vindo outro / como é que abre esse champanhe / como se ri”.
 

LEONARDO GANDOLFI é poeta e professor de literatura portuguesa da UNIFESP
 

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