Pornochanchadas são quase um grande inconsciente coletivo, diz diretora

'Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava' é o primeiro longa de Fernanda Pessoa

A diretora Fernanda Pessoa, de "Histórias que Nosso Cinema (Não) Contavam"
A diretora Fernanda Pessoa, de "Histórias que Nosso Cinema (Não) Contavam" - Divulgação
Inácio Araujo
São Paulo

Foi trabalhando na Filmoteca da Faap, onde estudou entre 2005 e 2010, que Fernanda Pessoa, 31, entrou em contato com os filmes produzidos em São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1970 que receberam o rótulo de pornochanchadas.

Porém só durante o mestrado, em Paris, que amadureceu a ideia de que, ali, nesse grupo de filmes ignorado pela crítica e aceito com entusiasmo pelo público popular, existia uma história possível do Brasil entre 1964 (golpe militar) e 1980 (momento da anistia).

 

O que a levou a fazer essa pesquisa sobre o cinema popular e erótico brasileiro?

Entre 2009 e 2010, durante o meu último ano do curso de cinema na Faap, trabalhei na filmoteca da faculdade, catalogando as fotografias do acervo de cinema brasileiro.

Quem coordenava a filmoteca era Máximo Barro, que foi montador de muitos filmes dos anos 1970, e várias dessas fotos vinham de seu acervo pessoal. Foi aí que me aproximei desses filmes.

Enquanto catalogava as fotos, sempre tentava assistir ao filme para saber quem eram os atores, os técnicos, se aquela foto realmente era daquele filme, essas coisas. Era muito difícil achar esses filmes.

O Máximo tinha alguns, mas outros era impossível achar e eu tinha que me basear só na ficha técnica ou em uma enciclopédia do cinema brasileiro. Aí comecei a ter a real dimensão do apagamento e da ausência de preservação desses filmes.

A percepção de que havia ali uma história do Brasil sendo contada precede a pesquisa ou surgiu durante?

Na filmoteca descobri um filme chamado "E Agora José", de subtítulo "A Tortura do Sexo", que me intrigou muito. Mais tarde, descobri que esse foi o primeiro filme brasileiro a retratar a tortura de civis por grupos paramilitares —mesmo que o filme faça isso de uma forma erotizada.

Há ali também a encenação da morte de Vladimir Herzog. É verdade que o filme conta a versão oficial da ditadura, de que ele teria se suicidado.

Algo que aconteceu em 2012, quando fiz meu mestrado na Sorbonne Nouvelle, também foi essencial na concepção do "Histórias". Houve uma aula sobre a reutilização de imagens no cinema experimental em que vi um curta-metragem, "Queda do Comunismo Vista pelo Pornô Gay", de William E. Jones, que começa com a seguinte frase: "Mesmo em um lugar improvável, é possível encontrar traços da nossa história recente".

Quando vi esse filme e a frase, eu comecei a olhar os filmes da dita pornochanchada com um olhar histórico.

Você já conhecia esses filmes?

Eu já tinha assistido a muitos desses filmes para o trabalho na filmoteca, mas só quando decidi fazer o filme é que fui atrás também do material bibliográfico que podia encontrar, e nesse processo descobri o site Estranho Encontro, da Andrea Ormond, em que li textos que foram fundamentais para que eu não caísse no senso comum de apenas criticar esses filmes.

Você constrói sua narrativa montando fragmentos que vêm de várias partes. Não pode haver manipulação nesse procedimento?

Quando fazemos um filme, sempre existe manipulação, em maior ou menor grau. Eu encarei os filmes com que trabalhei como meu material bruto.

Agora, eu penso que os filmes de montagem supõem confiança no espectador, de que ele é capaz de entender o que está em questão, onde estão a mão e as opiniões do diretor sem que seja necessária uma voz em off ou uma cartela que diga isso.

Tudo que está lá, sejam sons ou imagens, vem desses filmes. No entanto, os trechos estão claramente cortados pela minha visão —o telefone toca em uma cena, e quem atende é o personagem de outro filme, uma passagem é comentada pela fala de outro filme etc. Eu sempre quis que os próprios filmes contassem essa história e que a única manipulação fosse a da montagem.

Você trabalha um tipo de cinema considerado menor, de "exploitation". O que pensa hoje desses filmes?

Nesses cinco anos de realização do "Histórias" eu descobri que existe uma grande diversidade entre os filmes produzidos na época e que isso que chamamos de pornochanchada não é um gênero definido e uniforme, ou um movimento dentro do cinema nacional.

São filmes que contêm grandes contradições: muitos são machistas, mas de vez em quando aparece uma personagem feminina forte que traz a questão do aborto à tona; retratam a família tradicional brasileira com escárnio, mas muitas vezes reiteram os papéis convencionais dela.

Acho que todo filme revela algo sobre a história de sua época, mesmo que não seja a intenção original. Eu diria que a maioria desses filmes não tem, voluntariamente, um discurso político. Poucos têm essa pretensão, diretores como Ody Fraga, Jean Garrett, Alfredo Sternheim —e essas pretensões políticas são tanto de direita quanto de esquerda.

Qual a relevância, do seu ponto de vista, de terem sido sucesso popular a seu tempo?

Eram a esses filmes que grande parte do povo brasileiro estava assistindo naquele momento, eles são quase um grande inconsciente coletivo do período. E foi essa contradição que me chamou muito a atenção quando comecei a conhecê-los —durante uma ditadura moralista e repressiva, os filmes mais vistos pelo povo brasileiro eram pornochanchadas!

O quanto foi complicado todo o processo de realização do filme?

Encontrar o material foi uma das etapas mais difíceis —e ainda mais encontrá-lo em boas condições. Procurei os filmes em todos os lugares possíveis: colecionadores privados, cinematecas do Rio e de São Paulo etc. Alguns produtores nem sabem onde estão as cópias originais. Há filmes perdidos talvez para sempre. Há hoje no YouTube, com qualidade muito ruim, saídos de VHS, gravados de exibições em TV etc. Inclusive um dos filmes que usamos só achamos no YouTube.


Fernanda Pessoa, 31

Cineasta e artista visual que vive em São Paulo, trabalha com cinema documental e videoinstalações. Morou também nos EUA, em Buenos Aires e em Paris, onde fez mestrado. Em 2016, realizou no MIS-SP a videoinstalação "Prazeres Proibidos", sobre a censura aos filmes de pornochanchada. "Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava" é seu primeiro longa

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