O que Obama fez pela igualdade racial foi jogado fora por Trump, diz Spike Lee

Para diretor de 'Infiltrado na Klan', omissão do atual líder reabasteceu energia de grupos extremistas

Spike Lee, diretor de 'Infiltrado na Klan', em Cannes, onde conversou com a Folha - Stephane Mahe - 15.mai.2018/Reuters
Bruno Ghetti
Cannes

Por um bom tempo, Spike Lee achou que a luta pela igualdade racial nos EUA estava progredindo. Mas a situação mudou com Donald Trump. Para o diretor, o discurso reacionário do presidente abriu caminho para que grupos violentos e supremacistas voltassem a aterrorizar a população, sobretudo os afrodescendentes.

"Os Estados Unidos estavam evoluindo nos anos do presidente Obama. Mas aí entrou esse outro cara [Trump], então tudo o que Obama fez foi jogado fora. Como James Bond sendo ejetado por aquelas cadeiras propulsoras dos filmes dele", diz o cineasta, rindo. Depois, fecha a cara: "Não, não tem a menor graça. Mas você tem que rir para não chorar".

Lee falou à Folha no último Festival de Cannes, na première mundial de "Infiltrado na Klan". Destaque da Mostra, o longa, que estreia no circuito comercial em 22 de novembro, levou o Grande Prêmio do Júri no evento francês e é uma das apostas para o Oscar.

A trama se baseia na história verídica de Ron Stallworth, investigador policial negro que conseguiu uma façanha quase inacreditável nos anos 1970: tornar-se membro da Ku Klux Klan, grupo supremacista branco responsável por perseguir, agredir e matar vários afrodescendentes.

As conversas entre Stallworth e a KKK eram por telefone. Fingindo ser branco e racista, o agente ludibriou o grupo e a ele se filiou, para investigá-lo melhor.

Nas reuniões, um policial branco, Flip, se passa pelo colega. Spike Lee turbina a história ao fazer, no filme, com que Flip tenha origem judaica, dando à trama ares ainda mais absurdos, já que a Klan também é hostil a judeus.

O elenco traz John David Washington (filho de Denzel) em sua estreia como protagonista. Adam Driver dá vida a Flip, e Topher Grace interpreta o chefão da Ku Klux Klan nos anos 1970, David Duke.

Hoje aposentado, Duke voltou a ser notícia nesta semana ao dizer que detecta princípios da Klan no discurso do candidato Jair Bolsonaro (PSL). "Ele soa como nós", disse, em entrevista à BBC.

"Infiltrado na Klan" se passa nos EUA dos anos 1970, mas fala da atualidade. Spike Lee diz que, após as manifestações racistas de Charlottesville, em 2017, notou o quanto a omissão de Trump reabasteceu a energia de grupos de extrema direita como a Klan.

"Ali, ele teve a chance de unir as pessoas. Mas não fez isso. Pôde denunciar grupos terroristas intolerantes, mas não o fez. E esses grupos se sentiram estimulados."

Apesar da seriedade do assunto, o cineasta optou por falar de violência racial com humor em seu filme. Há quem ache que temas tão graves exijam tratamento mais sisudo, mas Lee discorda. "Kubrick já o fez em 'Dr. Fantástico' [1964, sobre a bomba nuclear]. Ou Billy Wilder, em 'Inferno nº 17' [1953], que se passa em um campo de concentração. Mas é difícil fazer porque é preciso encontrar o tom exato."

São outros dois clássicos, porém, que o cineasta escolheu para referenciar em pontos estratégicos de seu novo longa. "...E o Vento Levou" (1939), de Victor Fleming, e "O Nascimento de uma Nação" (1915), de D.W. Griffith. "São dois dos melhores filmes da história. Mas não na minha lista!", ri o diretor.

Lee tem seus motivos para repudiá-los. Por décadas, "...E o Vento Levou" foi lembrado por romper a barreira racial no Oscar, concedendo a primeira estatueta da história a uma pessoa negra, Hattie McDaniel, melhor atriz coadjuvante. Mas revisões mostrariam que o filme de Fleming tem vários elementos racistas. Já o longa de Griffith, um marco na evolução cinematográfica, legitima a ação da KKK.

"Quando eu estava na escola de cinema, falavam dos aspectos técnicos desses dois filmes. Mas nunca diziam como eram usados como ferramentas de recrutamento para a Ku Klux Klan. Nem de como pessoas foram assassinadas por causa deles", diz Lee.

"Os EUA se tornaram a potência que são hoje não por causa do poder nuclear, mas por causa da cultura. Dominamos o mundo por meio dela: jazz, blues, rock, cinema, TV."

O diretor acredita que a arte é capaz de mudar o mundo. Mas, pessimista quanto ao presente, volta a recorrer à cinefilia para definir o mundo em 2018. "Só me ocorre o título daquele filme de 1982, do Peter Weir: 'O Ano em que Vivemos em Perigo'. É bem essa a nossa situação atual", diz.

Infiltrado na Klan

(BlacKkKlansman). EUA, 2018. Direção: Spike Lee. Elenco: John David Washington, Adam Driver, Laura Harrier. 14 anos. Mostra: Qui. (18), às 21h15, no CineSesc; sex. (19), às 19h10, no Itaú Frei Caneca 1; seg. (22), no Itaú Pompeia 1, às 21h; sex. (26), às 18h40, na Cinesala; seg. (29), às 14h, no Itaú Augusta 1

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