Descrição de chapéu Flip

Livro revela Fernanda Montenegro de blackface

'Isso não pode existir mais hoje', afirma a atriz, que lançou nesta sexta retrospectiva fotográfica de sua carreira na Flip

Fernanda Mena MLB
São Paulo e Paraty

A atriz Fernanda Montenegro, dama dos palcos brasileiros, já fez uso de um recurso cênico hoje condenado pelo movimento negro como racista: a blackface.

A imagem da atriz com a pele escura e grandes olhos e lábios de cor clara é de 1955 e faz parte do livro "Fernanda Montenegro - Itinerário Fotobiográfico" (Edições Sesc), lançado na sexta (27) na Festa Literária Internacional de Paraty.

A atriz Fernanda Montenegro na peça "A Ilha dos Papagaios", de 1955
A atriz Fernanda Montenegro na peça "A Ilha dos Papagaios", de 1955 - Acervo Funarte

Blackface (rosto negro, em inglês) é o nome dado ao uso de tinta ou fuligem para a caracterização, geralmente estereotipada, de atores brancos como personagens negros.

"Acho que isso não pode existir mais hoje. Porque há um trabalho dos afro-brasileiros dentro da própria cor desde o Teatro Experimental do Negro, do Abdias Nascimento [1914-2011]", lembra a atriz.

"Naquela época [1955], essa problemática não existia, como não existiam muitas outras problemáticas." Durante esses anos, "o negro era geralmente tido como comediante", explica ela, citando Grande Otelo, seu colega de TV Tupi.

Disseminado nos EUA do século 19, a blackface era usada nos populares espetáculos de menestréis, com quadros cômicos. No Brasil, era um recurso usual. Em 1956, por exemplo, Paulo Autran maquiou-se de negro para viver o protagonista de "Otelo", personagem mouro de Shakespeare.

"E só a partir dos anos 1960 que realmente o batimento do mundo entrou numa outra era. A cada decênio, as reivindicações sociais e existenciais vêm em zonas diferentes, e ganhando. A cada dia, o mundo caminha", diz a atriz.

"Se o Brasil só agora está radicalizando no campo da etnia é porque talvez esse seja o momento. A gente tem que entender os andamentos e os respiros de uma sociedade."

O debate sobre blackface no teatro nacional ganhou mais força nos últimos três anos.

Em 2015, um caso chamou especial atenção: uma sessão em São Paulo de "A Mulher do Trem", do grupo Os Fofos Encenam, foi cancelada após ser acusada de estimular o racismo. A peça, uma comédia francesa do século 19, usava a linguagem do circo-teatro, com maquiagens exageradas.

Para Danilo Santos Miranda, diretor do Sesc, que editou o livro-memória de Fernanda Montenegro, "ator não tem cor nem sexo nem idade" e o uso de blackface nos anos 1950 era absolutamente normal. "Os negros não chegavam a esses espaços naquela época, não por não serem capazes, mas porque não tinham oportunidades iguais."

Já José Fernando Peixoto de Azevedo, diretor negro e um dos fundadores do Teatro dos Narradores, diz que o blackface "é uma máscara". "A questão é quem elabora essa máscara e a quem essa máscara substitui —algo que vem do apagamento desses corpos", avalia.

O figurino usado por Fernanda no registro histórico é da montagem "A Ilha dos Papagaios", baseada nos quadrinhos homônimos de Sergio Tofano (1886-1973), parte da série do autor italiano sobre o Signor Bonaventura, personagem com visão irônica da realidade criado em 1917.

A trama aventureira voltada ao público infantil se passa numa ilha pitoresca próxima da península italiana e habitada por uma tribo canibal.

Aporta ali um navio, com Bonaventura a bordo. A tripulação é capturada, mas escapa com a ajuda de Juiuk, garota que cresceu na ilha e que, descobre-se mais tarde, é na verdade uma garota branca. Filha perdida do governante de onde partiu a embarcação, a menina se pinta de negra para se enturmar com os habitantes da ilha dos papagaios.

No Brasil, a montagem foi feita pelo TMDC (Teatro Maria Della Costa) em 1955. Fernanda fazia a garotinha Juiuk.

"Não dá para condenar perpetuamente. O problema é quando as pessoas não tomam consciência para mudar as atitudes dali pra frente", diz a filósofa Djamila Ribeiro, expoente do movimento negro.

"A gente luta para que se entenda quando algo violenta certos grupos e se pare de fazer tal coisa", avalia ela, autora de "Lugar de Fala" (Letramento) e "Quem Tem Medo do Feminismo Negro" (Companhia das Letras).

As discussões recentes debatem não só recursos como a blackface, mas também como o negro é representado e qual o seu papel na arte.

No ano passado, espectadores negros questionaram o fato de a atriz Georgette Fadel, que é branca, interpretar uma poeta negra em "Entrevista com Stela do Patrocínio", peça em circuito havia 12 anos.

Depois disso, a atriz transformou a peça num debate, com artistas e o movimento negro, para repensar o formato da produção e a representação de personagens negros.

Outro caso mais recente é o da cantora Fabiana Cozza, que renunciou ao papel de Dona Ivone Lara após críticas de que seria "branca de mais" para interpretar a sambista num musical biográfico.

Cozza, que é filha de pai negro e mãe branca, foi indicada pela própria família de Dona Ivone, já que a paulistana é grande conhecedora do repertório da sambista. Depois da desistência, ela foi substituída por Fernanda Jacob.

Para Fernanda Montenegro, "as reivindicações políticas e sociais são inarredáveis", mas podem levar a confusões e extremismos. Para ela, no campo da luta racial, esse quadro pode conduzir "a uma radicalização do negro absoluto, do quase negro, daquele vindo pra branco e do branco com pai ou mãe negros".

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