Rei da noite, Facundo Guerra marca a ascensão e queda do centro paulistano

Empresário é dono de bar no subsolo do Theatro Municipal e de novo clube de jazz

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Facundo Guerra na piscina de bolinhas secreta de seu bar Arcos Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Peça fundamental da aura mística que atrai turistas e novos moradores à cidade, a noite paulistana não tem um dono. Mas, se tivesse, ele seria Facundo Guerra, 45, empresário mais lembrado pela geração pós-2000 que bebeu, se drogou, beijou ou só foi pela selfie a uma das 12 casas criadas pelo grupo Vegas.

Tudo leva o selo de Guerra. Da primeira boate, mito noturno que ainda dá nome ao grupo, até o empreendimento mais recente, o Arcos, um bar do início do século 20 recuperado por R$ 2,5 milhões no subsolo do Theatro Municipal e reaberto neste mês.

Seus projetos são elogiados por resgatar prédios esquecidos de São Paulo para lhes dar vida, fachada e drinques novos. Mas são, na mesma medida, vinculados a um estouro imobiliário de seus entornos, como o da Bela Vista, na região central, e à higienização de uma paisagem antes famosa pelos inferninhos e bares de bebida barata sem estrelas.

Ele até planeja abrir, no próximo mês, a primeira filial do clube americano de jazz Blue Note, no Conjunto Nacional, e em agosto, no antigo Cine Ipiranga, uma espécie de boate para gamers batizada de Arcade. O miolo entre a avenida Brigadeiro Luís Antonio e a rua da Consolação, no entanto, é seu principal legado.

Além do Vegas, há Volt (morto), Lions (vivo), Pan Am (morto), Yacht (vivo), Drive In (morto), Cine Joia (vivo), Riviera (repassado) e Mirante Nove de Julho (repassado). Todos cruciais para entender a montanha-russa da cena paulistana e a persona desse argentino radicado no Brasil que, antes de empresário, é um agitador cultural da cidade.

"Não quero fazer noite, mas sim espaços de sociabilidade. Gosto de criar lugares para humanos se encontrarem, porque testei todos os modelos e os que dão certo são lugares que não repetem fórmulas de antigamente, quando havia 'door police', por exemplo, um jeito de incluir apenas gente bem-vestida ou amigo de alguém", explica Guerra.

"Cansei de ser barrado em porta de boate nos anos 1990, essa época que dizem ter sido o auge da noite quando, na verdade, era uma época de bolhas, de clubinho de amigos."

Sua ideia de abraçar a diversidade tem a ver com a formação. Do fim dos anos 1970, quando veio ainda criança para São Paulo com os pais, até a sua adolescência, quando "todos os dias cruzava a linha imaginária de classes entre Santa Cecília e Higienópolis", ele teve de se adaptar às várias faces da cidade.

Ele puxa da memória os ataques de playboys a travestis que frequentavam as proximidades da Biblioteca Mário de Andrade e as tentativas frustradas de se encaixar, sem sucesso, em grupos dos colégios de elite onde estudou, como o Bandeirantes, quando era alvo de chacotas pela ascendência argentina e a timidez.

"Sempre fui um moleque sensível, portanto, bicha. Essa pecha me acompanhou toda a vida. Buscando me entender, percebi que ser assim é uma questão identitária, de comportamento, que você pode não transar com homens e ser bicha", diz ele.

Mesmo hoje, pai de uma garota de sei anos, Pina, fruto de sua relação com a apresentadora de televisão Vanessa Rozan, ainda há especulações sobre sua sexualidade. "E isso me incomoda, muito."

Talvez por isso suas casas noturnas nunca tiveram gênero ou público alvo únicos.

Guerra e os sócios José Tibiriça e João Cury reformaram um antigo galpão na decadente rua Augusta para abrigar noites de rock, techno e a clientela gay. Espaço mítico da cena paulistana, onde se reuniam jovens de diferentes classes e origens, o Vegas surgiu em 2005 e foi pioneiro entre clubes não gays ao pôr transexuais na porta de entrada como "hostess" e a formar filas de atores famosos sem passe livre. Naquele inferno escaldante, todos eram iguais diante dos olhos do dono.

A pujante política de revitalização do centro promovida pelo então prefeito José Serra e encampada pelo subprefeito da Sé à época, o vereador Andrea Matarazzo, ajudaram o grupo a se espraiar pela região central e tomar o poder de medalhões como D-Edge, Fun House ou The Week.

"Ele foi empreendedor, aproveitou que estávamos levantando o centro, desativando parte da praça Roosevelt para ela deixar de ser esconderijo do tráfico e limpando a área. Tanto o Vegas quanto o Cine Joia foram projetos muito importantes na função de atrair público para a região", afirma Matarazzo.

Mas só púbico não faz noite. Assim como coleciona mais de uma dezena de animais empalhados em sua casa no Pacaembu, fruto do interesse em taxidermia que o levou até a fazer curso em Paris, Guerra coleciona uma série de sociedades desfeitas.

Entre elas a que tinha até 2017 com o ex-secretário municipal de Cultura André Sturm no Drive In, projeto de exibição de filmes clássicos no Belas Artes, em frente ao bar Riviera, que durou dois anos de contas nunca fechadas.

"Facundo é uma usina de ideias e me empolguei com seu entusiasmo. Mas, por mais que sejamos entusiastas, não podemos pagar para trabalhar. Havia um custo fixo e um giro pequeno nas sessões diárias. Nunca fizemos a conta de quanto custaria, por isso não deu pra continuar", diz Sturm.

Essa mesma conta que não fecha acabou com outra parceria, da qual Guerra lembra com desgosto e culminou em um número bloqueado no WhatsApp. Anunciada como a cooperação de dois reis da noite, ele, a promessa, e José Victor Oliva, o experiente dono da Gallery, ícone dos 1970, a Storymakers foi criada para botar ordem no negócio.

No papel de sócio-investidor, Oliva pôs "um checão" nas mãos de Facundo —o valor nunca foi divulgado— e adquiriu participação nos negócios do grupo Vegas. Ao mesmo tempo que cresciam o Pan Am, o Riviera e o Mirante Nove de Julho, subia o choque de realidade em lidar com a caixa registradora de cada lugar.

"Eram filosofias diferentes. Nunca fui movido pelo dinheiro, não tenho o sonho da Ferrari própria. Vivo com R$ 15 mil por mês muito bem. Não deu, acabamos a sociedade e tchau, nunca mais quero conversa", dispara Guerra. "Quebrei naquele ano [2017], perdi o Mirante e o Riviera, mas me reergui pelo prestígio."

O fim do que seria uma parceria perfeita assume outro aspecto na voz de José Victor Oliva, que define o ex-sócio como "uma mistura de Walt Disney com Indiana Jones".

"É um menino fora de série, encantador. Seria parceiro dele para o resto da vida, mas não entrei no negócio para fazer uma ONG. Ele tinha um drone [ainda tem] que ficava rodando o dia todo procurando lugares, escavacando, procurando o tesouro. É o que ele sabe fazer", explica Oliva. "Mas é desajuizado, dá vontade de colocar no colo e dar conselhos."

O fim da picada para ele teria sido o dia em que Guerra e Marcelo Beraldo, outro sócio na empreitada, teriam brigado de "forma assustadora" no escritório. Beraldo não foi encontrado para comentar o imbróglio.

"Quando se convive com ele você passa a não acreditar mais em 95% das coisas que ele diz, porque a ideia é boa, mas por trás dela está tudo sempre desarrumado. Tenho horror disso", diz.

E não para. "Além disso, é a cara dos lugares, mas nunca aparece. É aquele tipo de jogador incrível, mas que nunca faz gol. Você acha que ele vai conseguir manter essas três casas esse ano mais as que já tem? Espero que sim."

Facundo Guerra, porém, alguma coisa aprendeu com a bancarrota. No terceiro dia de funcionamento, o Arcos, no Theatro Municipal, faturou R$ 25 mil. "Precisa faturar R$ 40 mil para se manter", revela, não sem uma ponta de ansiedade por, mais uma vez, falar de grana.

"Olha, de verdade, juro pela minha filha olhando nos seus olhos, nunca fiz por dinheiro. Minha missão é encontrar uma identidade para essa cidade. Pode parecer mentira, mas não é", diz, antes de pensar melhor e mostrar uma piscina de bolinhas, montada para a filha no fundo do bar dos Arcos.

"Faço as coisas para mim, e talvez esse seja meu problema, o ego, minha vaidade intelectual. A recuperação dos lugares é um pano de fundo, mas verdadeiro. É, pode ser que seja ego, sim."


Embalos de Facundo

O que o dono do grupo Vegas já fez em São Paulo

Vegas
2005-2012
R. Augusta, 765, Bela Vista
Fechou porque a dona recebeu uma oferta maior pelo aluguel do imóvel e Facundo Guerra não quis cobrir

Volt
2009-2015
r. Haddock Lobo, 40, Consolação
Fechou porque era mais barato tirar a parafernália do bar, que já não ia bem, e montá-la no PanAm

Z Carniceria
2009-
Abriu na rua Augusta, num antigo matadouro. Após fechar, em 2015, mudou-se para a av. Brigadeiro Faria Lima, 724, Pinheiros

Lions Nightclub
2010-
av. Brigadeiro Luís Antônio, 277, República

Cine Joia
2011-
pça. Carlos Gomes, 82, Sé

Yacht
2012-
r. 13 de Maio, 703, Bela Vista

Riviera (propriedade da Holding Clube, de José Victor Oliva)
2013-
av. Paulista, 2.584, Consolação

Mirante Nove de Julho (propriedade da Holding Clube, de José Victor Oliva)
2015-
r. Carlo Comenale, s/nº, Bela Vista

PanAm
2015-2017
Hotel Maksoud Plaza, r. São Carlos do Pinhal, 424, Bela Vista
Fechou porque uma jovem se jogou do parapeito da boate, que ficava no topo do hotel. Os negócios já iam mal, segundo José Victor Oliva, e a morte teria sido a pá de cal

Cine Drive-In
2016-2017
Cine Caixa Belas Artes, r. da Consolação, 2.423, Consolação
Fechou porque o faturamento necessário para manter a sala, toda em estilo vintage, não aconteceu

Café Lina (apenas consultoria)
2018-
av. Paulista, 900, Bela Vista

Arcos
2019-
Theatro Municipal, pça. Ramos de Azevedo, 
s/nº, República

Blue Note
fev.2019-
Terraço do Conjunto Nacional, av. Paulista, 2.073, Consolação

Arcade
ago. 2019-
Cine Ipiranga, av. Ipiranga, 786, República

Carrossel (nome provisório)
a partir de 2020-
Ainda sem local definido. Casa de striptease ‘não sexista’, que receba homens e mulheres

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.