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Cinema

Bruno Ganz, morto aos 77, transmitia vácuo emocional sem usar as palavras

Ator de 'Asas do Desejo' e 'Hitler' tinha a habilidade de trazer à tona incertezas e angústias

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Bruno Ganz interpreta Damiel em ‘Asas do Desejo’
Bruno Ganz interpreta Damiel em ‘Asas do Desejo’ - Divulgação

U m anjo cai na Terra ao se apaixonar por uma trapezista. O tirano considerado o mal em forma de gente vive seus últimos dias num bunker isolado da realidade. Ambas imagens representam a largueza do trabalho do ator suíço Bruno Ganz. 

Morto no último dia 16, aos 77 anos, ele se tornou reconhecido por personagens tão díspares do anjo Damiel, em “Asas do Desejo” (1987), e de Hitler, em “A Queda” (2004).

Ganz foi um intérprete incomum, discreto, avesso ao desempenho exuberante que dificulta o acesso à interioridade dos personagens. Essa habilidade de trazer à tona incertezas e angústias foi a característica que fez ressoar seu nome entre um público mais atento a autores que a atores.

Rohmer, Wenders, Herzog, Goretta, Tanner ou Angelopoulos foram grandes assinaturas no cinema europeu nas décadas de 1970 e 1980 com as quais o ator colaborou.

Antes de se projetar no cinema, Ganz havia se destacado no teatro de Zurique. Mais tarde, na disciplina coletivista do Schaubühne, em Berlim, diluiu as marcas do dialeto alemão das origens até se consolidar entre os mais reputados atores germanófonos de sua geração.

Depois de passear quase anônimo em produções para a TV, firmou-se com trabalhos para Rohmer, Wenders e Herzog, representantes do então chamado cinema de arte.

Sua aura pálida intensificou a fragilidade de tipos mais românticos que heroicos, como o conde russo de “A Marquesa d’O” (1976) e o malfadado Jonathan Harker, vítima masculina do vampiro na refilmagem de “Nosferatu” (1979).

Sua aparência suspensa no tempo ganhou outra ênfase quando ele passou a incorporar figuras melancólicas, retratos da crise e do vazio existencial, uma herança temática do cinema moderno retrabalhada pelos herdeiros da grande vaga do cinema moderno.

O enquadrador de “O Amigo Americano” (1976), o marinheiro de “A Cidade Branca” (1983) ou o escritor de “A Eternidade e um Dia” (1998), assim como o anjo caído em Berlim são exemplos da capacidade de Ganz transmitir sem palavrório o vácuo emocional.

Perambular seu corpo magro sem saber o que busca e andar na contramão das performances psicológicas do cinema americano são contribuições de ator.

Esses trabalhos ajudaram a consolidar, além do tipo físico e emocional, a voz de Ganz, a dicção peculiar que permite identificá-lo de imediato entre tantos sotaques cosmopolitas.

É por meio da voz de Ganz, canto mesclado a recitação, que a poesia de Rilke ganha corpo no prólogo de “Asas do Desejo”. É sua voz que ecoa o medo da derrota sob o disfarce da ira hitleriana nas cenas que foram dezenas de vezes reapropriadas. A releitura cômica em legendas só reitera a pluralidade emocional dessa atuação que ultrapassa os clichês do autoritarismo.

 

O ator defendeu-se de ter humanizado Hitler dizendo que, por ser suíço, tinha um passaporte que lhe permitiu passar de si ao personagem.

O papel de Hitler ajudou a firmar sua presença em produções internacionais, que ele vinha cultivando desde “Meninos do Brasil” (1978). Essa vertente incorporou sua figura como selo de autenticidade europeia ou como figuração ilustre em filmes autorais.

Mais que o sotaque, foi a aura de cinema substancial que Ganz transportou de um filme a outro.

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