No segundo semestre do ano passado, enquanto o país escancarava os seus abismos e a polarização sufocava o debate, uma mostra de cinema surgia na contramão dos gritos.
Ancorada na possibilidade de diálogo, a Sessão Mutual Films chegava com a proposta de, a cada dois meses, exibir e explorar conexões entre duplas de filmes que, para além de seus contextos, épocas e origens distintas, poderiam ainda assim encontrar pontos de convergência.
Sediado no IMS, o projeto inaugura em março a sua quinta edição, apresentando —nesta quinta (21) e no próximo domingo (24)— o programa “Dois Lados do Pacífico”, no qual serão projetados “A Marca do Assassino” (1967), filme mais celebrado de Seijun Suzuki (em cópia restaurada), e o experimental “66” (2015), do norte-americano Lewis Klahr.
O primeiro, uma espécie de neo-noir pop japonês, nos mostra os percalços de um renomado assassino de aluguel, cujo ofício destruidor o obriga a manter-se em constante estado de alerta e desconfiança. Para um matador, pessoas tornam-se apenas alvos e o cotidiano uma esteira de instintos primitivos. Não à toa, a vida do protagonista reveza-se entre exterminar, beber, transar e cultivar um estranho prazer pelo aroma de arroz cozido.
Já “66”, montado por recortes de revistas, quadrinhos, fragmentos de imagens e sons, intercalando ruídos e trilhas clássicas, é do tipo de obra cuja dificuldade de se deixar descrever em palavras só não é maior do que a experiência de contemplá-la na imersão de uma sala de cinema.
Com curadoria do crítico/programador Aaron Cutler e da artista plástica Mariana Shellard, parceiros de trabalho e vida, a Sessão Mutual Films faz do frescor dos títulos escolhidos uma de suas principais bandeiras, priorizando longas-metragens inéditos ou restaurados.
“O ineditismo é importante para nós, especialmente em relação a novas restaurações, pois essa é uma área ainda pouco explorada no Brasil e fundamental para o cinema em geral. Tratar uma restauração como uma estreia também é uma forma de educar o público e chamar atenção para essa área”, comenta a dupla.
Lição valiosa em um tempo (e em um país) desacostumado a problematizar o seu passado —preferindo escondê-lo a repensá-lo—, a prática da restauração revela aqui a sua função de resistência, dando aos filmes antigos a oportunidade de um novo começo, de se reinventar à luz de novos olhares, de ser atual apesar das décadas. De brinde, presenteia-se o espectador com um breve suspiro deste mundo histérico, viciado em inovações.
Impressa no folheto mensal do IMS, a introdução do diretor Lewis Klahr sintetiza, por fim, o espírito do encontro: “Embora eu esteja otimista sobre o diálogo inesperado e surpreendente entre os dois filmes, não tenho certeza absoluta se 'A Marca do Assassino' e '66' irão funcionar juntos. No entanto, se a dobradinha for um pouco absurda, estaria completamente de acordo com o espírito de risco e a quebra de convenções que envolve os dois filmes”.
É assim, apostando sempre no diálogo —mas aberta às incertezas e desconstruções que todo embate pode implicar—, que a Sessão Mutual Films deve constar como programa obrigatório não apenas de cinéfilos, mas de todos aqueles que ainda acreditam na arte como formação de consciência crítica.
Dois Lados do Pacífico
Quinta (21), às 19h15 ("A Marca do Assassino") e às 21h30 ("66"). Domingo (24), às 18h ("66") e às 20h ("A Marca do Assassino"). IMS Paulista, av. Paulista, 2.424. R$ 8.
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