Jorge Mautner reflete sobre o abismo em que o Brasil se meteu em disco de inéditas

Músico e escritor também terá suas obras completas publicadas e será tema de série na TV

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Jorge Mautner em seu apartamento no Rio de Janeiro - Rodrigo Sombra
Rio de Janeiro

Primeira noite. Depois de um show em Manaus, os fãs ocupam o camarim de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Mautner se desorienta, os rostos somem, as vozes silenciam. Ele corre para a rua e chama um táxi, mas ouve do motorista "desculpe, doutor, não há mais gasolina".

Segunda noite. Em Belém, Mautner se dirige a Gilberto Gil —mas cadê? O parceiro evaporou. Alguém bate em seu ombro. "Você é amigo de Gil? Quer um cafezinho?" Em desespero, o músico implora "não, quero voltar". "Impossível", lamenta o estranho. "Agora não tem mais carro."

O escritor e compositor Jorge Mautner permanecia vivo no leito de um hospital em São Paulo, no início de 2017. Dez sonhos de não retorno o assaltaram no tratamento de uma grande ferida na panturrilha, meses depois de sobreviver a um infarto.

"Eu estava quase morrendo. Me operaram e consegui sair. Tinha sempre sonhos. Eu vivo dormindo. Os sonhos são a literatura ao vivo", diz Mautner, 78, em seu apartamento no Leblon, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, protegido pelas contas de Exu, segundo ele, "o orixá do caos".

 

Não lhe falta motivo para viver. Em 12 de abril, ele lança o CD e LP de músicas inéditas "Não Há Abismo em que o Brasil Caiba", produzido pelo grupo Tono (Bem Gil, Rafael Rocha, Bruno di Lullo e Ana Cláudia Lomelino). Seu último álbum autoral, "Revirão", havia saído em 2006.

Ao mesmo tempo, a Azougue inicia neste mês o lançamento de seis volumes de suas obras completas, abertas pelo romance "Deus da Chuva e da Morte" (1962), vencedor do prêmio Jabuti de revelação literária —no site da editora, o primeiro comprador do livro ganhará um fac-símile do único número do jornal Ta-ta-ta, editado por Mautner em 1976.

E, ainda sem previsão de estreia, o canal HBO exibirá em breve os quatro episódios da série biográfica "Kaos em Ação", com roteiro de João Paulo Reys.

O título do novo disco vem de uma frase do filósofo português Agostinho da Silva, morto em 1994.

Em Lisboa, ao ser informado pelo sociólogo baiano Fernando Barros sobre a crise do governo Collor, o sebastianista Agostinho ponderou "o Brasil tem um destino tão grandioso, tão grandioso, que não tem abismo que o caiba". A hipérbole encantou Caetano Veloso, Gil e Mautner.

"Fiz músicas para minha mulher, Ruth, para Amora, minha filha, e para minha neta, Júlia. É a importância total da família e do amor. E gravei outras músicas de ideias, ideológicas. Predomina a emoção", diz Mautner. Depois da morte de Nelson Jacobina há sete anos, ele aprofundou a parceria musical com Bem Gil.

Uma das 14 faixas, o samba "Bang-bang" traz o sumo da poesia mautneriana —"a bala perdida/ lá do bang-bang/ abre uma ferida/ de onde escorre o sangue/ que se esvai e vai e corre/ e a pessoa morre/ gritando ai ai ai ai/ é tristeza em absoluto/ parece que ninguém se lembra/ de Joaquim Nabuco".

A vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em março do ano passado, ganhou uma canção indignada desde o verso inicial. "Uma força furiosa me impele a gritar."

Bem mais associado à música, Mautner despontou a princípio como escritor, em São Paulo, para onde se mudou aos sete anos com a mãe, Ana. Na década de 1950, as jornadas de escrita não excluíam a criação de canções como "A Bandeira do Meu Partido", "Olhar Bestial" e "Vampiro".

Fundador do Partido do Kaos, aos 16 anos, Mautner hoje se afina com o PCdoB, ainda que vestígios de anarquismo persistam em sua euforia com as bagunças da política brasileira e americana. "Ah, por favor! Caos de todo tipo: caos com C e Kaos com K. O que você acha do Trump?", gargalha.

Apesar da intimidade com as questões contraculturais, ele contesta essa relação. "Eu não sou contracultura. Sou cultura. Tenho citações de Heidegger, de Nietzsche, de Husserl, de todos os filósofos do mundo, de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo. Fui formado pelo meu pai com toda a literatura alemã e brasileira, com Machado de Assis. Treinava o estilo de um, de outro, mas não conseguia ter o meu", lembra. O estalo veio com a leitura do padre Antônio Vieira.

Mais desregradas do que caóticas, devedoras do pai antinazista, Paul, as ideias de Mautner jorram da poesia, da filosofia e da história, as fontes de suas profecias sobre o destino brasileiro. Ele se convenceu de que um país continental só pode ter sonhos de grandeza. E admite a assimilação de ideias sebastianistas em suas narrativas de povo eleito. "Tudo isso é messiânico, é Alcácer Quibir."

O ex-presidente Lula correspondeu a esse projeto de país, segundo ele. "Os grandes políticos do Brasil, que influenciaram coisas profundas, foram três: dom Pedro 2º, Getúlio Vargas e Lula da Silva", sustenta o artista.

 

A maré ultraconservadora na última eleição não abalou seu desejo de "brasilificar" o mundo. "Ele [Jair Bolsonaro] vai ser varrido. É justamente o ponto contrário. Eu só fico triste porque a esquerda não fala do nióbio", Mautner se aborrece. Nos últimos anos, inspirado no diplomata e abolicionista Joaquim Nabuco, ele vem insistindo na proposta de uma "segunda abolição", financiada pelos lucros da extração do nióbio do solo brasileiro.

"Nós temos 95% do nióbio do planeta. Não existe satélite, nem foguete, nem internet, nem celular sem esse nióbio. O Canadá tem 2%. Com isso eles fazem escolas e universidades", reitera. "Por isso, eu fiz uma letra [referindo-se a 'Bang-bang']. Tem que chegar a segunda abolição".

De agora em diante, o tom é declamativo. "Ela é ensino, ela é escola, ela é instrução pública. Se ela não chegar, chegará o sangue da revolução. Ainda é tempo. Ela é a distribuição de renda."

A certa hora, descendo das alturas das ideias, Mautner reconhece a elevação de seus papos cotidianos. "Não sei fazer nenhuma conversa humana. Só faço conversas desumanas. Políticas, estratégicas, filosóficas", brinca. Pergunto se ele não é capaz de explicar como se faz um bom ovo frito. "Não, não, não. Isso é fofoca. Embora a fofoca seja a coisa mais importante. Quem já falava isso era Gogol e Dostoiévski. Tudo é fofoca e mito. Claro que existem satélites. Mas a visão é fofoca."


Não Há Abismo em que o Brasil Caiba

Artista: Jorge Mautner. Gravadora: Deck. Lançamento em 12/4, nas plataformas digitais. Shows: 23/4, no Net Rio; 1º e 2/5, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo

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