Descrição de chapéu

Obra de brasileiros na Bienal de Veneza corre risco de fetichizar corpos periféricos

'Swinguerra', do duo Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, transforma swingueira em batalha

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Veneza

“O Brasil é um país maravilhoso. Devemos honrar o que está escrito na bandeira, ordem e progresso”, diz a voz de um homem fora de cena. E o que vem na sequência não é uma propaganda de alistamento militar, mas um baile brega-funk em que dançarinos transexuais juram lealdade à pátria verde e amarela.

O filme da dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, peça central do pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza, é uma das obras mais singulares e magnéticas entre as representações oficiais no evento.

Música pegajosa, um acabamento plástico matador e a coreografia com disciplina militar de três grupos do Recife –Extremo, La Máfia e Bonde do Passinho– se juntam em “Swinguerra” para a apoteose catártica de uma investigação de anos de Wagner e Burca.

O universo brega e a indústria do funk são terrenos já muito bem mapeados pelo casal de artistas, mas o passo além na obra que estreou em Veneza foi dar um verniz de urgência a um grito represado pelos filtros que separam a baixa da alta cultura num momento de convulsão social e enorme polarização política.

Wagner e Burca, eles dizem, desafiam a visão de Brasil defendida por Jair Bolsonaro. Os personagens do filme, aliás, em muito lembram os jovens retratados na propaganda do Banco do Brasil vetada no mês passado pelo presidente. Mas, em vez de censurados, são esses mesmos corpos negros e trans que representam o país na maior e mais tradicional exposição de arte do planeta.

O que na superfície poderia ser lido como um ataque à visão de mundo do homem agora no comando do Palácio da Alvorada, no entanto, também depõe a favor do governo atual, que pode afirmar com todas as letras que a liberdade de expressão está mantida no país, contrariando bravatas.

Há dois anos, Cinthia Marcelle transformou o pavilhão nacional numa espécie de presídio à beira de uma rebelião, com grades e pedras no chão e um filme em que homens apareciam segurando tochas no telhado de um prédio. A artista ganhou então uma menção honrosa do júri da mostra, uma espécie de segundo lugar na premiação de melhor representação oficial no evento –o Leão de Ouro neste ano foi para a Lituânia, com menção honrosa para a Bélgica.

Enquanto Marcelle aludia ao barril de pólvora em que se transformava o país no governo Temer, antes da eleição que levou Bolsonaro ao poder, Wagner e Burca retratam os nervos à flor da pele de uma nação tomada por ânimos conflagrados, a guerra civil que aos poucos se infiltra em todos os gestos e conversas.

Daí a swingueira, as competições de dança que viraram moda na periferia do Recife, descambar para a guerra do nome do trabalho. Muito da força do filme, aliás, está na forma como a coreografia ali opera no limite entre expressão plástica pop e uma formação de combate, a pista de dança como rinha de galo.

Quando os garotos e garotas entram em formação ali, não é um exagero lembrar o que fez Beyoncé na letra e nos passos de dança da canção “Formation”, levando o vocabulário visual da luta armada dos Panteras Negras ao universo reluzente da indústria pop.

Bárbara Wagner e Benjamin de Burca estão longe do pensamento de Beyoncé, mas se mostram em sintonia, por exemplo, com um artista como Kahlil Joseph, que participa da mostra principal desta Bienal de Veneza e já fez clipes para a estrela da música debatendo questões raciais.

O trabalho da dupla brasileira, aliás, antes parecia se ancorar na ambiguidade do retrato que fazia de seus personagens, entre a glamorização e certa ridicularização de quem não costuma frequentar o mundo exuberante do showbusiness, de funkeiros a aspirantes a cantores gospel.

Neste último caso, quando retrataram músicos evangélicos num filme de dois anos atrás, Wagner e Burca já estavam atentos à ascensão de novas ondas na frente cultural.

Mas, na evolução da obra, aquele que era um olhar cheio de nuances lançado em direção a esses personagens periféricos foi se transformando em celebração exaltada, podendo descambar para uma romantização quase predatória desses corpos marginais.

“Swinguerra” é sem dúvida um dos trabalhos mais fortes já criados pela dupla até agora, mas revela seu ponto frágil quando fica a milímetros de fetichizar a cultura que luta tanto para mapear e celebrar contra todo e qualquer movimento de ódio e censura.

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