O tempo é como uma dobra que se move levando-nos para outros mundos no documentário “A Rainha Nzinga Chegou”, codirigido pelas mineiras Júnia Torres e Isabel Casimira e um dos destaques da programação de hoje do 14º Festival de Cinema Latino-Americano.
As primeiras imagens nos inserem no limbo dos filmes de arquivo. Trata-se de um registro documental feito num passado pouco distinto, meio borrado como as cenas desgastadas pelo tempo, mas ali arquivadas.
Nelas há tambores ritmando uma cerimônia de congado e, num plano fugaz, vemos um casal paramentado como rei e rainha. Uma locução típica das antigas formas do documentário explica a origem do congado e que o festejo tem vários tipos: o candombe, mais antigo, do qual vieram o moçambique e o congo.
As danças e cantos presentes nessas imagens servem como passagem para as histórias que seguiremos a partir dali.
Torres e Casimira não adotam o formato do documentário informativo ou jornalístico. Mesmo que contenha depoimentos, a proposta das realizadoras não é relatar linearmente uma história ou reconstituir com alguma objetividade uma prática cultural.
Estamos mais próximos da imersão que da observação. Sendo assim, o papel da música, na forma de cantos, rezas e ladainhas, será decisivo para a narrativa.
O primeiro bloco acompanha o cotidiano de Isabel Cassimira, rainha da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio. O grupo preserva uma tradição ancestral trazida da África pelos escravos e transmitida ao longo de gerações no interior de Minas Gerais.
As roupas, os ritos de benzeção e as relações da rainha com a comunidade se conectam nas cenas por meio de um olhar que não se preocupa em transformar aquele universo diferente em objeto de estudo.
A morte da rainha introduz um corte nessa postura de familiaridade e lança o filme em outra dimensão, longínqua e ao mesmo tempo conectada.
Uma viagem à África leva dois descendentes de Cassimira a descobrir, desvendando para nós, as origens. Aos poucos, emergem signos ancestrais e sinais de semelhança entre o nascimento da tradição no reinado mítico de Nzinga, no século 15 em Angola, e sua transmissão e transformação do lado de cá do Atlântico.
Esse compartilhamento é mostrado como uma viagem, feita de surpresas e de simpatias, de nexos entre mundos com histórias próprias e mesmo assim próximas.
Apesar de o tratamento se manter fragmentado, “A Rainha Nzinga Chegou” não se transforma em um filme só para iniciados.
O modo como os cantos e danças intervêm projeta passagens, estica linhas tênues entre o que o ritual teria sido na África e o que veio a ser no interior do Brasil.
Ali, as identidades se reconhecem na forma de plantas, de palavras, de valores. Recria-se uma comunidade perdida, um pertencimento que dá a impressão que o tempo não existe.
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