Descrição de chapéu Livros

Ana Maria Machado e Ruth Rocha lamentam o ódio aos 50 anos de carreira

Homenageadas na Bienal do Livro do Rio, autoras se encontram para falar de livros, Bolsonaro e Amazônia

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São Paulo

Ana Maria Machado está atrasada, presa no trânsito carregado de São Paulo. "Mas ela ligou e disse que está chegando", diz Ruth Rocha, sentada na cadeira de balanço na sala de sua casa, para frente e para trás, para frente e para trás.

Ali, nos Jardins, na zona oeste da cidade, ela disfarça a ansiedade relembrando os tempos de faculdade, quando estudou na Escola de Sociologia e Política, há quase 70 anos. "Tínhamos aula com o Sérgio Buarque de Holanda."

Ela conta que, na companhia do autor de "Raízes do Brasil", viajou com os colegas a Ouro Preto, no interior de Minas Gerais. O sociólogo acompanhou o grupo e ziguezagueava pelas igrejas e ladeiras norteado pelo "Guia de Ouro Preto", lançado por Manuel Bandeira em 1938. "O Sérgio era divertidíssimo, adorava cantar, rir", lembra.

Como se a risada do professor ganhasse vida, ela abre um sorriso ao ver Ana Maria Machado abrir a porta do apartamento sem bater, e as duas dão um abraço demorado. Quem vê a cena pode achar que elas não se veem há anos. "Que nada, acho que a última vez foi em junho", segreda a amiga.

Ruth Rocha e Ana Maria Machado são mais do que dois dos principais nomes da literatura para crianças e jovens no Brasil —a primeira, autora de clássicos como "Marcelo Marmelo Martelo"; a segunda, de histórias como "Bisa Bia, Bisa Bel" e vencedora do prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura para essa faixa de público.

Antes de serem escritoras, as duas são amigas. E, antes de amigas, são parentes. Ana se casou com o irmão de Ruth, o que fez com que elas se conhecessem em 1965.

"Foi quando fiquei noiva. Era a prova da ferradura, a hora de conhecer a família toda", conta Ana. Isso anos antes antes de se tornarem escritoras —o que ocorreria só em em 1969, o ano em que passaram a publicar suas histórias na revista Recreio.

Exatos 50 anos e centenas de livros depois, Ruth Rocha, 88, e Ana Maria Machado, 77, são agora as autoras homenageadas da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que vai até o dia 8 de setembro.

Nessas cinco décadas, as autoras não formaram só gerações de leitores, mas escreveram a caneta, na máquina de escrever ou no computador durante todas as mudanças recentes do Brasil, da ditadura à eleição de Jair Bolsonaro.

"A ditadura foi complicada, mas ninguém se importava com histórias para crianças. Tanto que escrevi ‘O Reizinho Mandão’. Uma vez, um menino me perguntou se aquele reizinho não era o presidente. Eu tentei desconversar, dizer que podia ser um pai mais cheio de ordens. Mas ele não aceitou, não. E perguntou se eu não tinha medo da polícia. Tinha. E muito", diz Ruth.

Enquanto ela criava seus reizinhos embaixo do nariz dos militares, Ana foi presa pelo regime e se exilou a partir de 1970 —primeiro na França, depois no Reino Unido. "Mandava histórias de lá para cá. Todo mês saía pelo menos uma e me ajudava a pagar o aluguel."

A prisão e o exílio, porém, tiveram mais a ver com suas convicções políticas do que com os contos infantis. "Cheguei a lançar ‘Era Uma Vez um Tirano’, que hoje é distribuído em campos de refugiados sírios. Minha conclusão é que os generais não liam nada para os netos", brinca Ana.

E, num salto para o Brasil atual, a escritora acrescenta que "as pessoas continuam não lendo, mas vivemos hoje numa época pior que a ditadura".

Na visão das duas, a explicação para isso é que hoje já não basta odiar algo. É preciso também atacar nas redes sociais com o maior ódio possível. "Na época dos militares, não existia essa figura que está cheio por aí, o freelancer da repressão", completa Ana.

"Eu não entendo esse ódio que existe agora no Brasil", emenda Ruth. "Nós elegemos o Bolsonaro a partir do ódio", diz. E, então, a conversa toma o caminho da política. "Sei que é um plural majestático, mas ‘nós’ não o elegemos, né?", Ana interrompe.

Sobre o atrito recente entre Jair Bolsonaro e o presidente francês, Emmanuel Macron, Ruth diz se envergonhar. "No mínimo, Bolsonaro deveria pedir desculpas pelo que disse sobre a mulher do Macron e porque o filho dele chamou o presidente francês de idiota."

"É uma vergonha", completa Ana. "Se um senador que seja votar a favor desse Eduardo Bolsonaro para ele se tornar embaixador nos Estados Unidos, será um vexame nacional", diz Ruth. A respeito das queimadas da Amazônia, Ana é curta. "Alegria de palhaço é ver o circo pegar fogo."

Embora concordem em tudo ou quase tudo, sejam tias corujas de seus sobrinhos e tenham carreiras muito próximas, as duas tomam caminhos diferentes quando o assunto é literatura. Ruth conta ser mais intuitiva e influenciada pelos 15 anos em que foi orientadora pedagógica.

Ana segue outro rumo. "Nunca estudei pedagogia ou psicologia. São duas formações diferentes. O que me fez escrever para crianças foi a tentativa de criar uma obra de qualidade literária, com camadas de significados e intertextualidade, a partir de uma linguagem que geralmente não é considerada literária."

E logo se lembra de uma visita a um colégio de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Na ocasião, ela conversava com alunos de sete anos, enquanto um menino mais velho ouvia de pé, na porta.

No fim, esse garoto levantou a mão e disse que havia lido anos antes um dos livros de Ana, "História Meio ao Contrário". Só que, ao reler a obra depois, ele descobriu coisas novas na narrativa. "E falou: ‘eu me amarro em livros assim, cheios de submundos, porque a gente cresce e ele cresce junto’. Essa explicação é a própria definição de literatura."

Um dos submundos que Ruth está prestes a lançar é um inédito pela editora Moderna —um almanaque com 12 personagens da turma do Marcelo. Ainda não há data.

Já Ana publica em setembro a antologia de poemas "Brinco de Listas", pela Global. E tem um livro de contos adultos em preparação. "Sabe que nunca mostramos nossos originais uma para a outra?", diz ela.

Ao que a amiga emenda. "É verdade. Mas me diz uma coisa: você fica para jantar?"

3 livros imperdíveis de Ana Maria Machado, segundo Ruth Rocha

  • "Bisa Bia, Bisa Bel"
  • "A Jararaca, a Perereca, a Tiririca"
  • "História Meio ao Contrário"

3 livros imperdíveis de Ruth Rocha, segundo Ana Maria Machado

  • "Nicolau Tinha uma Ideia"
  • "O Menino que Aprendeu a Ver"
  • "Davi Ataca Outra Vez"

DESTAQUES DA BIENAL DO RIO

Sábado (31)
15h - Laurentino Gomes fala sobre seu novo livro, ‘Escravidão - Volume I’

19h - Encontro com Luis Fernando Veríssimo e equipe do filme ‘Clube dos Anjos’

Segunda (2)
13h30 - Ana Maria Machado fala sobre 50 anos de carreira

Quarta (4)
19h - Martinho da Vila e Elza Soares abordam política e literatura com Zeca Camargo

Sexta (6)
15h - Ruth Rocha fala sobre os 50 anos de carreira

Domingo (8)
19h - Mário Magalhães, Miriam Leitão e Melina Risso conversam sobre o Brasil

Bienal do Livro
Rio Centro - av. Salvador Allende, 6.555, bienaldolivro.com.br. Até 8/9. Seg. a qui., das 9h às 21h; sex., das 9h às 22h; sáb. e dom., das 10h às 22h. Ingr.: R$ 30

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