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Netflix quer melhorar dublagem de suas séries estrangeiras

Empresa aposta que melhores versões em inglês de sucessos como 'La Casa de Papel' levarão mais americanos a vê-los

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Jill Goldsmith
The New York Times

Em junho, a atriz Ayelet Zurer estava diante de um microfone em um estúdio de gravação de Los Angeles, lendo diálogos em inglês em voz alta enquanto eles corriam pela tela sob as cenas da série espanhola "La Casa de Papel", em cartaz na Netflix.

Ela estava fazendo a voz de Raquel, uma inspetora de polícia durona interpretada por Itziar Ituño, mas seu desempenho ia além das palavras. Ela suspirava, dava de ombros, meneava a cabeça —tudo isso cuidadosamente sincronizado com as ações de Raquel na tela—, seguindo as instruções de Matt Kollar, o diretor de dublagem.

"Aonde foi o professor?", Zurer disse no microfone.

Kollar: "Não diga 'professor'. Parece dublagem".

Zurer: "Estamos procurando um suspeito de meia-idade".

Kollar: "Curto demais. E 'suspeito' parece dublagem".

No contexto, "parece dublagem" é qualquer coisa que interrompa o fluxo da fala —dicção incômoda, uma escolha de palavras canhestra— ou fique conspicuamente fora de sincronia com os movimentos de boca dos atores na tela. (Basta recordar os velhos filmes de monstros japoneses que víamos nas tardes de sábado na TV.)

Assim como no Brasil, versões dubladas de séries são comuns há muito tempo no mercado europeu de TV, onde programas cruzam fronteiras regularmente. O mercado é próspero, há prêmios estabelecidos, e os dubladores são famosos por direito próprio.

Mas nos Estados Unidos, um país mais isolado, dublagens costumam ser tratadas como piada, graças a décadas de filmes de artes marciais mal adaptados e a westerns spaghetti definidos por péssima seleção de elenco de voz e deficiências incríveis de sincronização.

A Netflix, que talvez controle o acervo de mais rápido crescimento de séries e filmes internacionais, deseja muito mudar essa percepção. Nos últimos nove meses, ela vem recrutando atores e cineastas para criar uma cadeia de produção capaz de elevar drasticamente a qualidade das versões em inglês de suas séries internacionais, tornando-as convincentes o suficiente para conquistar mais assinantes americanos e, no processo, elevar significativamente a audiência de suas produções internacionais —pelo menos é o que a empresa espera.

"La Casa de Papel", que mês passado retornou com sua terceira temporada, é a série mais vista da empresa entre as produções não faladas em inglês, disse a Netflix (sem revelar números de audiência). Mas o acervo de séries de sucesso em outros idiomas está crescendo.

Três lançamentos recentes —"How to Sell Drugs Online" (Alemanha), a segunda temporada de "The Rain" (Dinamarca) e "Quicksand" (Suécia)— conquistaram, cada um deles, entre "12 e 15 milhões" de espectadores em todo o mundo, disse Ted Sarandos, vice-presidente de conteúdo da Netflix, esta semana, em uma discussão sobre o faturamento da companhia no segundo trimestre.

Séries populares "Elite" e "Cable Girls", ambas espanholas, e "Sacred Games" (Índia), estrearão novas temporadas em agosto e setembro. O apelo mundial dessas produções, disse Sarandos, "é uma mudança ante o que estamos acostumados a ver desde o começo do cinema e da televisão, ou seja, que quase todo o conteúdo que viaja pelo mundo é americano e falado em inglês".

Em seu anúncio de resultados, esta semana, a Netflix reportou uma rara queda em seu número de assinantes nos Estados Unidos, bem como desaceleração em seu crescimento geral no segundo trimestre. Os resultados, combinados à competição crescente no setor de streaming, tornam ainda mais urgente vasculhar o planeta em busca de conteúdo atraente.

Mas isso cria um problema de linguagem. Legendas acarretam suas dificuldades, em nossa era multitarefas, o que é comprovado pelo fato de que muitos assinantes nos Estados Unidos já preferem as versões dubladas às versões legendadas de produções estrangeiras.

A Netflix informou que 85% de seus assinantes preferem a versão dublada à versão legendada de "The Rain". No caso do mistério sobrenatural alemão "Dark", 78% dos espectadores optam pela versão legendada. Para "La Casa de Papel", são 72%.

A Netflix, como sempre, prefere ser reticente quanto às audiências totais. Mas está apostando em sua capacidade de elevar a audiência geral das séries faladas em outros idiomas entre seus 371 milhões de assinantes anglófonos —a maioria dos quais vive nos Estados Unidos—, caso consiga criar dublagens melhores em inglês, capazes de atrair pessoas que rejeitariam versões dubladas de baixa qualidade.

Do ponto de vista estratégico, a empresa espera alavancar as produções que já está realizando no exterior enquanto conglomerados rivais preparam seus serviços de streaming e retomam o controle de algumas séries muito populares na grade atual da Netflix, como "Friends" (que passará a ser veiculada pelo novo serviço de streaming HBO Max, da WarnerMedia) e "The Office (NBCUniversal).

"Estamos literalmente criando uma nova audiência", disse Debra Chinn, diretora de dublagens internacionais da Netflix.

"La Casa de Papel" servirá como teste. A Netflix tomou a decisão incomum de refazer as dublagens das duas primeiras temporadas recorrendo a um novo diretor e elenco, montado para a temporada três, que inclui a atriz Ayelet Zurer.

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Cena da série 'La Casa de Papel', disponível na Netflix - Divulgação/Netflix

Em junho, a empresa substituiu as versões mal sincronizadas das dublagens das duas primeiras temporadas —nas quais Raquel usava expressões como "silêncio!" ao ordenar que colegas arruaceiros calassem a boca— por novos diálogos.

"Em filmes de animação, tropeços de sincronia podem ser aceitáveis porque se trata de um mundo de fantasia, e não de alguém enfiando a arma na cara de outra pessoa dentro de um carro", disse Chinn, cujas funções anteriores incluíram preparar "Os Flintstones" para os mercados mundiais, em um emprego precoce no estúdio Hanna-Barbera.

Ela trabalhou para quatro estúdios em Hollywood antes de aceitar uma proposta da Netflix. "Mas filmes com atores reais precisam ser mais fiéis aos personagens", completa.

A Netflix costuma dublar suas produções em nove idiomas, normalmente: francês, italiano, alemão, turco, polonês, japonês, espanhol castelhano, espanhol latino-americano e português brasileiro (ela oferece legendas em 27 idiomas). Mas em abril a companhia criou um novo posto, o de diretor de criação para dublagens em inglês, e deu o trabalho a David McClafferty, um de seus supervisores de dublagem.

Ele já vinha trabalhando na montagem de uma rede informal de talentos criativos, iniciada nove meses atrás, quando contratou Kollar para comandar a dublagem da série israelense "When Heroes Fly" e, em seguida, "La Casa de Papel".

Zurer, atriz israelense cujos créditos incluem "Demolidor", "Munich", "Angels & Demons" e "Hostages", em versões dubladas para a Netflix, participou das dublagens de ambas as séries. Em seguida, ela dirigiu a dublagem em inglês de "Kidnapping Stella", filme alemão que estreou recentemente na Netflix.

McClafferty contratou Christian Lander, um dos roteiristas da série de TV "Black-ish" e seu colega de universidade, para dirigir a dublagem em inglês de "Boi", um filme espanhol sobre um jovem motorista de Barcelona, no intervalo entre temporadas de sua série principal.

Uma conversa com um colega no departamento de tecnologia da Netflix conduziu McClafferty ao ator e diretor Joel David Moore, que dirigiu a dublagem da série belga "13 Commandments", falada em flamengo e estrelada por Max Osswald.

Em todos esses casos, McClafferty encorajou as equipes que contratou a abordar os projetos de dublagem menos como uma sessão de gravação e mais como uma filmagem.

"A maneira de fazer com que a dublagem em inglês evolua é convidar artistas e permitir que escalem elencos e dirijam trabalhos de acordo com sua visão", ele disse. "Quero que sintam que podem ir a um lugar em que tanto respeitem a versão original quanto extraiam desempenhos naturais sem minha interferência ou sem interferência do estúdio em sua criação."

Em alguns casos, a Netflix usa o elenco estrangeiro original, caso os atores tenham inglês bom o bastante, como aconteceu com "The Rain" e "Dogs of Berlin".

McClafferty contratou o ator alemão Torsten Voges para dirigir a dublagem em inglês das duas séries. Voges agora é diretor de dublagem freelancer para a Netflix.

"Nem sempre é fácil convencer os atores", mas eles muitas vezes são os melhores candidatos, disse Voges. "Porque realmente compreendem os personagens."

Boa dublagem requer atores capazes de desempenhos naturais e de explorar as nuanças não verbais dos personagens por trás dos diálogos, disse a diretora de elenco Dorit Simone, que trabalhou em múltiplas séries da Netflix e escala cada projeto como se fosse uma produção original.

"Alguém pode dizer 'eu te odeio' querendo dizer 'eu te amo', e é preciso transmitir isso com a voz", ela disse.

Para "La Casa de Papel", ela e o diretor Kollar testaram e escalaram atores com créditos em produções como "Homeland", "The Young Pope" e "Hawaii Five-O".

A busca da Netflix por talentos de voz foi reforçada no final de semana, com a assinatura de um contrato de três anos com o SAG-Aftra —o primeiro entre a empresa e o sindicato de atores de Hollywood. O novo contrato prevê salário mais alto e melhora nas condições de trabalho e expande as oportunidades de trabalho na dublagem em inglês de filmes e séries.

Na sessão de gravação no estúdio VSI de Los Angeles —parte do VSI Group, uma empresa internacional e um dos 125 estúdios de gravação que a Netflix usa o redor do planeta—, os atores estavam concluindo seu trabalho para as três temporadas de "La Casa de Papel".

"Lembre-se, estamos procurando um cara de meia-idade", disse Zurer, olhando para Kollar.

"Ainda está curto demais?", ela perguntou, e tentou de novo: "Lembre-se, estamos procurando um homem, um homem de meia-idade..." Em outra área do estúdio, a atriz Hollie Sokol estava usando um macacão vermelho como o que sua personagem, Tokyo, usa na série, e esperava para dizer suas falas.

"Tratamos as gravações como cenas reais", disse Kollar.

McClafferty no momento está trabalhando em dez dublagens para o inglês e tem outras oito encaminhadas para os próximos meses. Ele começou a recorrer a diretores estabelecidos como Andrew Bujalski ("Support The Girls"), para ver se estão dispostos a experimentar o trabalho.

"Eu gostaria de tentar", disse Bujalski. "Imagino que a maioria dos cineastas se intrigue com o truque mágico de sobrepor um desempenho a outro."

O objetivo último, disse Moore, que trabalhou em "13 Commandments", seria garantir que, se os telespectadores desistirem da série, isso não aconteça por conta da qualidade da dublagem. A esperança é que as mudanças de pensamento que ele já observou no estúdio terminem por se reproduzir entre os espectadores.

"No primeiro dia, sei que todo os atores questionam o que estão fazendo lá", ele disse. "Mas, no final do processo, todos concluem que o trabalho foi muito mais bacana do que imaginavam."

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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