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Programa virou fenômeno com 'pobre, preto e favelado' na TV logo após ditadura

Documento Especial, que estreou há 30 anos, testou limites do jornalismo e ganhou pecha de sensacionalista

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Luara Calvi Anic
São Paulo

“Tem que cobrar para entrar em Copacabana e Ipanema. Tenho horror de olhar para essas pessoas e descobrir que são brasileiros. É uma sub-raça, um monte de gente sem educação que vai comer farofa com galinha.”

As frases são de uma banhista da zona sul carioca num episódio de 1989 do programa Documento Especial, que mostrou a saga de moradores dos subúrbios para pegar uma praia no Rio de Janeiro. 

Exibida entre 1989 e 1998, a atração foi pioneira ao usar a câmera escondida, os longos planos sem corte e a retratar pessoas e situações muitas vezes ignoradas pelo jornalismo.

“Era um tempo em que pobre, preto e favelado não tinha  espaço na telinha. Havia uma série de regras não escritas, do tipo ‘gente feia e desdentada nem pensar’”, diz o jornalista André Rohde, que foi coordenador de reportagem e hoje trabalha no Domingo Espetacular, da Record. 

Ele diz que o programa tinha abordagem ousada e até escrachada, “que raramente tem espaço nos novos tempos politicamente corretos”.

Semanalmente, o ator e apresentador Roberto Maya vestia terno, sentava numa poltrona chesterfield à meia luz e caprichava na voz empostada para narrar as reportagens. “Até hoje sou reconhecido na rua, tamanho o sucesso do programa”, conta ele.

Os 430 episódios variam entre temas abstratos e outros mais polêmicos — “Amor” começa com uma citação de Roland Barthes, “Chega de Saudade” traz Tom Jobim ao piano. Os mais controversos falam de prostituição, grupos neonazistas, a Igreja Pentecostal —nesse último, Eduardo Faustini, repórter investigativo que hoje está no Fantástico, fez a cobertura com uma câmera escondida dentro de uma bíblia de madeira.

“Era o primeiro governo civil depois dos militares, e a imprensa testava seus limites. O programa era uma tentativa de mostrar a realidade sem filtros e sem a assepsia reinante na TV da época”, lembra Rohde.

“Tinha grande repercussão, as pessoas comentavam na rua. Era um fenômeno.”

Em 1992, depois de ter estreado na Manchete, o programa migrou para o SBT. Para o primeiro episódio na emissora, a equipe fez uma reportagem sobre corrupção no governo Collor que foi censurada. 

“O SBT deu um jeitinho de não publicar. Era um momento delicado, o presidente estava sendo destituído. Eu estava fazendo o programa logo após os anos de chumbo no Brasil, era esperado”, diz Nelson Hoineff, diretor e criador do programa. Hoje o episódio “O País da Impunidade” pode ser visto no YouTube.

Ele afirma que o programa, que foi chamado de sensacionalista, era 100% confiável.  “Não tem um plano que seja falso. Mas tudo o que estava lá era tão insólito que às vezes parecia irreal até para mim.” 

O episódio “Vidas Secas” mostrava a seca do Nordeste e a fome na região. “As pessoas tinham que andar 1,5 quilômetro para pegar uma moringa de água. Filmamos um bebê morrendo no colo da mãe. É uma tragédia, não há nada de sensacionalismo nisso porque não há a nossa interferência no fato”, diz Hoineff. 

Em fevereiro, o jornalista de 70 anos escreveu um depoimento em uma rede social descrevendo os preparativos para o seu próprio sepultamento. “Foi o embrião para um livro que é meio uma reportagem sobre mim mesmo, uma coisa Tom Wolfe. E tal qual o Documento, não contém uma vírgula de mentira.” 

Hoineff passou dois anos internado, tratando uma infecção no pé e hoje se recupera em casa. Quer terminar o livro até o final de outubro e distribuir seu documentário sobre o cantor Agnaldo  Timóteo, “Eu, Pecador”, exibido no Festival do Rio de 2017. 

Em 1992, ele partiu da frase de Nelson Rodrigues de que os idiotas vão dominar o mundo para criar o episódio “A Revolução dos Idiotas”, sobre um Brasil que parou de pensar. 

“O programa antecipou muitas coisas que a gente vê hoje”, diz o jornalista André Rohde.

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