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Cinema

Réplica: Críticos dizem que 'Bacurau' é um filme de propaganda; e daí?

Mais relevante é que a discussão sobre filmes brasileiros começa a extrapolar a esfera do povo do cinema

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É consolador observar que um sociólogo como Demétrio Magnoli, representante de uma direita civilizada, se disponha a discutir um filme como “Bacurau” (Folha de 16/9), ainda que sob uma ótica abertamente dirigida a um duplo objetivo: desfazer o filme por ser de esquerda e desfazer da esquerda por aderir ao filme.

O que motiva a perda de inteligência da esquerda, enfatizada no artigo, é, sobretudo, a comparação com Glauber Rocha, em particular “O Dragão da Maldade”. Não posso falar pela esquerda e pela inteligência em geral. 

Ainda assim, não me parece uma comparação tão pertinente. Entre os anos 1960 e 2019 certas mudanças ocorreram no cinema. Os anos 1960 eram abertos a obras inovadoras e enigmáticas. Exibiam-se em várias salas filmes de Antonioni e Godard. Se, hoje, fossem exibidos nas mesmas salas daquele tempo, haveria um festival de poltronas rasgadas e gente debandando do cinema.

De lá para cá mudaram os filmes e também as pessoas. Quando o espectador não compreendia um filme, naquele já longínquo tempo, atribuía a incompreensão a suas próprias limitações e tratava de correr atrás, conversando com amigos, lendo etc. O público de hoje é bem mais simples: quando não entende algo, simplesmente o rejeita. Se eu não entendo, o filme é ruim. Exemplo recente: as baixíssimas audiências do extraordinário “Twin Peaks”, de David Lynch.

Num país com formação cinematográfica mínima como o Brasil, isso significa rejeições por vezes absolutas a Abbas Kiarostami, Manoel de Oliveira, Chen Kaige, não importa se representam a esquerda, a direita, o centro, o Irã ou a China. Tanto faz.

Assim, a opção por um filme direto, que exprime o sentimento de opressão que sentem as pessoas do centro à esquerda desde a cada vez mais desnudada deposição de Dilma Rousseff, não é nada estranhável. Sim, as alegorias são por vezes muito simples, ao alcance de qualquer mortal. Os filmes de Glauber não eram. Demétrio sabe disso. 

Temos muitas obras mais sutis do que “Bacurau”, sem dúvida. “O Que Se Move”, de Caetano Gotardo, “Branco Sai, Preto Fica”, de Adirley Queiroz, “Sinfonia da Necrópole”, de Juliana Rojas, “Gabriel e a Montanha”, de Fellipe Barbosa. Todas obras bastante ignoradas pelo público e que não mereceram comentário algum de sociólogos, médicos, engenheiros, etc.

Relendo o artigo vejo que um dos grandes pecados de "Bacurau" é ser um filme de propaganda. E daí? “O Nascimento de uma Nação” foi uma grande propaganda da Ku Klux Klan, nem por isso é um filme menor. Ao contrário. Se quisermos ir à esquerda, digamos que o “Potenkim” é igualmente uma obra de propaganda. Nem por isso é menor.

E os Estados Unidos? Que dizer da série “Por que Combatemos”, que envolveu grandes cineastas durante a Segunda Guerra? Ou de todo o chamado cinema de esforço de guerra? Eram propaganda, é evidente. Mas não significam que os EUA tivessem ficado burros de uma hora para outra. Antes pelo contrário.
Os exemplos não teriam fim. Vamos em frente.

Demétrio se incomoda com o fato de a resistência aos turistas atiradores ser tão unânime. Com efeito: sob ameaça de morte não é raro populações se unirem de maneira unânime. Normalmente ocorre com países em guerra, por exemplo. Não vou dar mais uma fileira de exemplos: qualquer faroeste com cidade ameaçada serve.

Talvez o que espante em "Bacurau", justamente, é participar dessa tradição normativa do cinema americano, que década após década nos ensinou como nos comportar, como beijar, como amar, como ser valente, como defender a justiça. Não é uma tradição desprezível, ao contrário.

“Bacurau” é normativo. Une bandidos e não bandidos (como, por exemplo, “Assalto à 13ª. DP”, de John Carpenter). É bastante violento, como os filmes de Sam Peckinpah  ou Robert Aldrich (nada a ver, que eu vislumbre, com Tarantino, em quem também  não vejo nada de fascista).

Aliás, assim como menciona Marielle no final, o que designa a preferência política dos autores, Carpenter é explicitamente referido no corpo do filme. Assim como é possível gostar da literatura de Céline e não ser racista.

Mesmo discordando de Demétrio, me parece um mérito do filme ter suscitado o interesse pelo cinema brasileiro de um autor que, habitualmente, não trata do cinema em geral. Penso na perda intelectual representada pelo fato de tantos filmes de igual ou maior sucesso terem passado em branco, sem despertar o interesse nem dos críticos, nem dos cineastas, nem  de gente de direita, de esquerda, do centro, o que for, com a marcante exceção do artigo da “Nova História do Cinema Brasileiro” que ensejou ensaio publicado no recente numero dos “Cahiers du Cinéma” dedicado aos filmes brasileiros.

Por fim, é da ordem da evidência que "Bacurau" é um filme sobre resistência e de resistência. Contra entrega do Brasil a estrangeiros (assassinos ou não), contra o neorracismo, contra a supremacia suposta das pessoas do Sudeste sobre as do Nordeste, pela vontade de viver contra a vontade de matar. É um filme direto, feito para ser compreendido por qualquer pessoa. É um cinema que busca se aproximar do público. De um público que aplaude a violência reativa ali representada, talvez porque a esquerda (e os democratas em geral) se sintam tão indefesos, tão incapazes de articular uma resposta à cotidiana barbárie instalada no país.

Talvez isso explique, de passagem, mais do que qualquer hipotético alucinógeno, que alguns personagens façam amor ao longo do filme: é a vontade de viver que se impõe contra a morte.

Isso é propaganda? Sem problema. Griffith já fez. John Ford já fez. Eisenstein já fez. Tanta gente já fez. A TV Globo já fez. E ninguém se incomodou com isso. Mais relevante, para mim, é que a discussão sobre filmes brasileiros comece a extrapolar a esfera do povo do cinema.

Erramos: o texto foi alterado

O nome correto do filme de Adirley Queiroz é "Branco Sai, Preto Fica". A informação foi corrigida.

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