O teatro e bar Cemitério de Automóveis fica na região da praça Roosevelt, mas, ao mesmo tempo, é afastado e bem diferente daquele polo cultural e alternativo paulistano.
O ambiente é escuro, estreito e estranhamente silencioso. Sentado no balcão do bar um homem de roupas pretas rasgadas tem tremedeiras e se equilibra entre o transe de entorpecentes e o sono. Faz frio e chove num domingo triste que combina com aquele espaço sombrio.
Nos fundos do bar fica o teatro onde o público assistirá a “Barrela”, a primeira peça escrita por Plínio Marcos, em 1958, e que, após uma única apresentação, foi censurada, bem antes da ditadura militar, para ser liberada somente no final da década de 1970.
Com uma sintaxe direta e cortante, “Barrela” apresenta uma imagem dura da pobreza, da barbárie, do abandono. Os diálogos secos de personagens confinados numa cela de cadeia, violentos e animalizados, se amplificam naquele ambiente underground do Cemitério de Automóveis.
Tudo na peça parece meio datado: o modo de fala, as gírias estranhas e antigas, o rebaixamento ofensivo da homossexualidade, assim como o desamparo do preso isolado de outrora, se comparado com a organização do crime em facções nas prisões de hoje.
Apesar disso, emana da montagem algo muito verdadeiro. O público entra em silêncio, não há avisos gravados sobre uso de celulares, não são entregues programas do espetáculo e o elenco não retorna no final para receber os aplausos. Não há nada da tradicional liturgia teatral. O espetáculo parece ser uma extensão do ambiente sombrio daquele bar e teatro, como também das ruas tristes do centro de São Paulo ou do desalento daquele domingo chuvoso.
A encenação de Mário Bortolotto faz com que a distância histórica se reverta em força metafórica sobre uma sociedade doente. Para isso, conta com a força coletiva do elenco. Ninguém se destaca propriamente, mas parecem um grupo de velhos companheiros, atentos uns aos outros e ao movimento coletivo da montagem. Interpretam aqueles seres obtusos da peça sem se render totalmente ao estereótipo fácil da representação da violência.
Curiosamente, este conjunto sombrio que envolve toda a experiência de assistir a “Barrela” no Cemitério de Automóveis deixa antever o seu oposto. Percorrendo o subterrâneo da representação daquele ambiente sub-humano da peça vemos também o interesse pelo desamparo do outro, a revolta contra aquilo tudo e a sensível camaradagem do grupo.
Por trás da estética desencantada e obscura que envolve o lugar, a peça, o elenco mal-encarado, há um tipo de esperança amalgamada na raiva.
É revelador como a iluminação de “Barrela” (assinada por Caetano Vilela), cheia de penumbras e longos blecautes, cria um contraste com a réstia de luz do dia amanhecendo lá fora no final do espetáculo. Um dos detentos olha a aurora por detrás das grades e é como se olhasse a chance de outro mundo, outra sociabilidade, outra forma de se viver.
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