'O Brasil está doente, mas eu estou avançando', diz Elza Soares, que lança disco

Cantora afirma que continua com fome, acha que puseram tranquilizante na água do povo e quer 'cantar o que se cala'

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Rio de Janeiro

“Não quero voltar a Lisboa”, Elza Soares afirma, incontornável, quando uma de suas assessoras lembra do último show que ela fez em Portugal. A cantora diz que o Brasil está resfriado, mas que não consegue se reconhecer fora daqui. “Cantar de galo no terreiro dos outros? Quero cantar no meu terreiro.”

Essa conexão da cantora com o país é a base de “Planeta Fome”, seu 34º disco, que sai nesta sexta (13). O álbum carrega no título a famosa resposta que Elza deu a Ary Barroso, quando ela tinha 13 anos e se atreveu a cantar no programa de calouros que ele apresentava na rádio Tupi.

elza soares sentada com o dedo na boca
Retrato da cantora Elza Soares, que esta semana lança disco de músicas inéditas - Ricardo Borges/Folhapress

Segundo Elza, o disco vinha sendo concebido desde aquele episódio de 1953. “Pensava que ‘planeta fome’ era pela fome de comida”, diz. “Mas cheguei à conclusão de que tenho muito mais fome. De saúde, de respeito, de amor, de um país melhor. Quero continuar, estou com fome.”

A expressão é antiga, e foi resgatada, diz a cantora, pelo momento do país. “Só agora estou vendo que o pessoal está com muita fome. Nos anos 1960, também vi isso. Tenho história para contar, não estou buscando em livro. Achei que aquilo ia passar, mas estou vendo outra vez.”

É a evolução do recado de quatro anos atrás, quando Elza surgiu pedindo para que a deixassem “cantar até o fim” em “A Mulher do Fim do Mundo”. O disco de 2015, aclamado pela crítica, foi a aproximação da cantora com as guitarras e a cena contemporânea de samba-noise de São Paulo.

O primeiro álbum inteiro de inéditas da cantora marcou o retorno à relevância e uma renovação em sua carreira. Rendeu um Grammy Latino, uma sequência —“Deus É Mulher” (2018), também produzido por Guilherme Kastrup— e quatro anos de turnês e shows no Brasil e mundo afora.

Foram trabalhos importantes, mas aquela linguagem já se aproximava de um esgotamento. Até por isso, para “Planeta Fome”, a cantora procurou novos colaboradores.

“Fui atrás de gente do país todo, pedi composição para todo mundo. Mas, quando nos encontramos, ela já sabia o que queria”, diz Rafael Ramos, do selo Deck, produtor do novo disco. Em “Deus É Mulher”, Elza já havia aumentado sua participação na seleção do repertório. Agora, ela assume ainda mais as rédeas do projeto.

“Queria fazer algo com meus sonhos, meus desejos”, ela conta. “Escolhi o repertório, arranjos, dei pitaco em tudo.”

Além de músicas inéditas, “Planeta Fome” traz algumas regravações, incluindo duas músicas de Gonzaguinha, “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo Sem Memória”, e “Brasis”, de Seu Jorge. Para “Blá Blá Blá”, ela mescla um trecho de “Chega”, de Gabriel O Pensador, com “Me Dê Motivo”, clássico de Tim Maia. A faixa ainda traz versos do rapper BNegão.

Já “País do Sonho” saiu de um vídeo no Facebook. Elza usava a rede social quando viu uma gravação ao vivo da música do sambista Chapinha da Vela. “Era um samba normalíssimo, mas ela já tinha dito que, se fosse pra ter samba, era só na alma. Ela disse: ‘Envenena isso aí’”, lembra Ramos. A canção virou um drum and bass com cuíca e guitarra.

Em “Não Tá Mais de Graça”, Elza atualiza um de seus hinos, “A Carne”, música de 2002 cujo refrão diz que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Agora, ela canta que “a carne mais barata do mercado não está mais de graça”.

“Eu não valia nada. Hoje, estou valendo uma tonelada”, celebra. O discurso se relaciona com todo o disco “Do Cóccix até o Pescoço”, de “A Carne”. Aquele álbum representou não só uma ruptura com o samba, mas também a aproximação de uma abordagem mais experimental, influenciada pelo hip-hop e pela música negra contemporânea, além das letras socialmente conscientes que são indispensáveis para sua obra atual.

“Esse título de rainha do samba ficou para trás”, confessa. “Quem tem coroa aqui? Rainha faminta? Quero não.”

Hoje, o passado de Elza não passa de uma sombra. Dos tempos de samba e de contratos restritivos com grandes gravadoras, ela lembra da pouca liberdade. “Não tinha escolha. Precisava de um emprego.”

Sobre o processo de revisitar as memórias para sua recente biografia, escrita por Zeca Camargo, ela rejeita completamente a nostalgia. “Saudades do que? Da fome?”

Não é difícil de entender. Elza foi mãe aos 13 anos, perdeu um dos filhos para a fome aos 15 e viu ainda as mortes de outros dois, além da de Garrincha, seu marido. A relação com o lendário jogador também teve momentos conturbados.

Por isso tudo, Elza não se sente confortável para falar do passado. Ela não comenta o uso de drogas e nem gosta de lembrar dos problemas com a ditadura, nos anos 1970.

A essa altura da vida —não confirma a idade, mas já passou dos 80—, Elza carrega o status de mito na música brasileira e de ícone dos movimentos negro e feminista. Quando lançou “A Mulher do Fim do Mundo”, contudo, ela recebeu críticas pela falta de mulheres nos bastidores do álbum.

“Ah, deixa o pessoal reclamar. Inclusive, sinto falta disso. Botaram Lexotan na água do povo. Está todo mundo calado”, diz, ríspida. “Nos anos 1960, eu via muita gente na rua. Chico, Caetano, aquelas composições fortes. Sofreram, claro, por toda a rebeldia. Mas, hoje, está todo mundo com medo de falar. É por isso que uso minha voz, para falar o que se cala.”

Em “Libertação”, single de “Planeta Fome” com participação do BaianaSystem, Elza se apresenta como inimiga do fim, repetindo que não vai sucumbir com a voz rouca e resistente. A sensação é de que não há idade avançada e nem dificuldade de mobilidade que possam cessar a fome insaciável da artista.

“Vozona não sou”, diz. “Você não vai me ver de chinelinho, mas sim de calça jeans rasgada, camisetona. O Brasil está doente, mas estou avançando.”

O jornalista viajou a convite da gravadora

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