Descrição de chapéu

Livro sobre desastres do urbanismo do Rio retrata origem impura do samba

Autor Bruno Carvalho articula finamente romance, poesia, teatro, música e cinema da cidade

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Cidade Porosa - Dois Séculos de História Cultural do Rio de Janeiro

  • Preço R$ 79,90
  • Autoria Bruno Carvalho
  • Editora Objetiva

O rastro torto das reformas urbanas antipopulares no Rio de Janeiro do século 20 atravessa o livro “Cidade Porosa”, do ensaísta brasileiro e professor titular de Harvard, Bruno Carvalho. A promissora amálgama do bairro Cidade Nova, localizado entre o centro e o porto, desaguou na imagem contemporânea da “cidade partida”.

O samba, o choro e o carnaval se desenvolveram nesse espaço multiétnico até a década de 1940, com o protagonismo de ciganos, africanos escravizados ou alforriados, afro-descendentes, judeus asquenazes, nordestinos e imigrantes europeus.

Nele batia o coração do Mangue, a zona do meretrício cuja mescla de nacionalidades traumatizou os sentidos de escritores modernistas, a exemplo de Manuel Bandeira e Mário de Andrade, e encorajou a confiança do austríaco Stefan Zweig no futuro da miscigenação.

O poeta Manuel Bandeira fala ao telefone
O poeta Manuel Bandeira fala ao telefone - Divulgação

Bairro criado por decreto em 1811, numa área pantanosa a meio caminho da residência real em São Cristóvão, a Cidade Nova seria rasgada pelo bota-abaixo higienista do prefeito Pereira Passos, que demoliu cerca de 600 construções e pariu a avenida Central, mais tarde rebatizada como Rio Branco. O medo da febre amarela virara uma arma de convencimento.

Outra vez na rota da modernização, essa “Pequena África” entraria em colapso no Estado Novo: em 1944, a avenida Presidente Vargas varre a praça 11, mítico reduto do samba.

A porosidade definida por Carvalho não cede a retratos idílicos do Rio, nem desconsidera a violência ou a redução do diálogo entre os extremos da ex-capital federal. A coexistência de grupos variados na Cidade Nova sugeria, porém, uma vocação contrária à selvageria. 

“Seus tantos indivíduos de alguma forma deslocados muitas vezes chegavam com uma bagagem cultural de raízes profundas e, em diversos níveis, tiveram que negociar suas identidades e práticas culturais num ambiente urbano marcado pela pluralidade e pela mistura e sobreposição de línguas, interesses, aspirações, possibilidades e histórias pessoais”, escreve o autor.

A Cidade Nova, porque devastada, não era um caso de urbanismo precário. Carvalho registra que seus moradores desfrutavam de infraestrutura e rede de transporte de bom nível. O perfil popular do bairro central destoava do padrão urbano por fim vitorioso de empurrar os trabalhadores pobres e pingentes para as quebradas e as franjas da metrópole.

Aquelas reformas não tinham inspiração exclusiva nos bulevares parisienses do barão de Haussmann. A ditadura Vargas absorveu “influências do nazifascismo”, num “momento de urbanismo sintonizado com as estéticas e objetivos totalitários”, afirma Carvalho.

A cada intervenção contra o atraso e favorável ao automóvel, o caráter poroso das relações sociais no Rio perdia as suas cores. Segregar virava paisagem, além de verbo, à medida que os ricos conquistavam a zona sul e os pobres subiam as favelas.

O estudo de Bruno Carvalho articula finamente romance, poesia, teatro, música e cinema na reconstrução da cartografia cultural do Rio. Esse manejo do imaginário carioca inclui exegeses da literatura de Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto, nos quais o autor identifica tensões entre as ruas marginalizadas e a cidade letrada da rua do Ouvidor.

Além desses três romancistas, outros “mediadores culturais” se firmam como mensageiros entre os dois mundos —João do Rio, Tia Ciata, Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa e Orson Welles. Sim, Welles. Nas filmagens de "It’s All True", o diretor americano logo percebeu a relevância da praça 11 na formação impura do samba.

“No Brasil da década de 1940, enquanto as metáforas dos urbanistas e da imprensa controlada pelo Estado Novo eram frequentemente enganadoras e inadequadas, os versos de um compositor popular estavam bem mais sintonizados com as complexidades e as contradições da vida numa cidade em rápida transformação”, Carvalho observa.

Os sambas “O X do Problema”, de Noel Rosa, e “Praça Onze”, de Grande Otelo e Herivelto Martins, são testemunhos críticos dessa transição. “Você pode crer que palmeira do Mangue/ não vive na areia de Copacabana”, cantou Noel.

Imagem do livro "No Tempo de Noel Rosa", de Almirante, de 1963.
Imagem do livro "No Tempo de Noel Rosa", de Almirante, de 1963. - Reprodução

Editado em inglês há seis anos e agora lançado em versão em português, “Cidade Porosa” é um livro essencial para pensar velhos desastres urbanos e lamentar recentes desvios. Concentrados no eixo leste-oeste, os investimentos da Olimpíada de 2016 reforçaram a ausência de aprendizado. “O Rio de certa forma dobrou a aposta elitizante das reformas de Pereira Passos, preterindo os outros vetores históricos de seu desenvolvimento, que acompanham a baía da Guanabara e as linhas de trem”, conclui Carvalho, do lado de quem deseja um Rio mais poroso.

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