Jean-Luc Godard abre seu filme-ensaio “História(s) do Cinema” dizendo: “Não mostre as coisas por inteiro/ Guarde para você uma margem de indeterminação”. Tal trecho pode ser lido como arte poética do diretor, não por ser mero elogio ao incompleto, mas sim por valorizar o processo artístico que trabalha com fragmentos e diferentes texturas.
Franklin Alves Dassie, em “JLG”, parece escrever a partir dessa “margem de indeterminação” para —refletindo sobre os limites do livro de poesia— homenagear o cineasta que sempre questionou os limites do cinema.
De início, o livro assume a forma de diário escrito durante uma mostra de filmes de Godard no Rio de Janeiro em 2015.
Há passagens do tipo: “Quem são as pessoas que assistem a uma retrospectiva completa de JLG? Senhores e senhoras aposentados, jovens de vinte e poucos anos c/ camisa floridas, estudantes, mais aposentados, revolucionários em potencial, cineastas em potencial e pessoas perdidas. / Identifico-me com todas elas.”
A certa altura, o autor-personagem faz anotações em seu caderno, como se o leitor estivesse nos bastidores do livro. Depois diz que está escrevendo um documentário, não qualquer um, mas sim um “documentário contemporâneo”.
A hesitação da identidade do texto se confirma quando a escrita diarística se associa a descrições de filmes, citações de Godard ou ainda quando assume tons de uma carta endereçada à interlocutora não nomeada, acerto de contas com uma relação amorosa em colapso.
“Uma cena é quando a gente vê quem está em cena, mas não vê quem dá as ordens”, anota Dassie para logo em seguida corrigir: “Queria fotografar você, mas não seria legal fotografar você sem você saber que eu fotografava você.”
O formato do “documentário contemporâneo” lançaria mão do registro que se sabe parcial, já que sacrificar a presença do autor em cena seria também sacrificar o que resta de sua relação amorosa.
Noutro instante, ele afirma que está sendo “engolido” pela “ideia de escrever um documentário sobre JLG” e reconhece que só consegue fazer bem qualquer coisa quando é engolido por ela.
Na relação entre se manter sempre em cena e ao mesmo tempo ser engolido por ela, o autor se vê confuso, cansado e levado a “fazer cena”. De fato, a “repetição de frases” e a “sobreposição de coisas” levam-no a considerar os diversos riscos que seu livro-documentário corre: “Entro em crise porque já não sei de onde é cada frase ou cena”.
Por falar em crise, Godard surge, em dado momento, explicando o significado dos SMS que as pessoas costumam mandar umas às outras: “Save my soul”. Enquanto na página ao lado, uma modelo, amiga do narrador, escreve no seu iPhone poemas contra a depressão.
“JLG” mistura ensaio, bloco de notas, teoria de arte e autorretrato de um escritor convalescente, tudo isso dentro de um bem-humorado e desconcertante livro de poesia. Até Godard, que anda meio sisudo, daria gargalhadas.
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