Leia entrevista inédita com o guitarrista Andy Gill, morto no início do mês

Músico que, com o Gang of Four, reinventou o punk, falou de Bolsonaro, Trump, brexit e jornalismo

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Alexandre Matias
São Paulo

“Às vezes, a melhor forma de fazer com que a verdade se torne aparente é através do sarcasmo, da ironia ou agir como se você fosse um destes personagens”, me explicou o inglês Andy Gill durante sua última vinda ao Brasil, na manhã do dia 22 de novembro de 2018, no dia em que faria a primeira de suas apresentações naquele ano em São Paulo, no Sesc Pompeia.

O guitarrista e mentor do grupo Gang of Four, que morreu no primeiro dia deste mês, concedeu esta entrevista, que ainda não tinha sido publicada, e seguiu explicando seu modus operandi: “Vamos entrar na cabeça de um desses militares orgulhosos e gananciosos e contar a história de sua perspectiva —isso é muito velho, é a letra de ‘He’d Send In The Army’”, resumiu citando um dos hinos de seu grupo.

Com o Gang of Four, Andy Gill reinventou o punk por diferentes pontos de vista, tanto ao desconstruir a guitarra elétrica como um instrumento quase rítmico, uma arma de combate, mais que um instrumento melódico autocentrado, como ao elevar o nível da discussão ao reler o niilismo dos Sex Pistols sobre a cena do faça-você-mesmo de um ponto de vista marxista. “Começamos a falar de política de forma mais ampla, mas também sobre coisas que poderiam impactar nas pessoas individualmente, para que elas percebessem como essas coisas se interrelacionam”, explicou.

O guitarrista Andy Gill
O guitarrista Andy Gill, da banda Gang of Four - Reprodução/Twitter

Era inevitável que o papo que aconteceu no café de um hotel no bairro de Perdizes fosse para a política, não apenas pela natureza contestadora de seu grupo como pelo contexto da época: o resultado da eleição para presidente no Brasil havia acabado de acontecer e Gill ficou impressionado com o fato do novo presidente ter “Messias” como nome do meio.

“Há 20 anos havia uma ideia que o progresso seria contínuo, que, de alguma forma, a história iria tornar o mundo menos sexista e menos racista numa progressão estável daquilo que chamamos de valores legais, mas não é assim que funciona, que é o que estamos vendo agora”, lamentou Gill, conectando o que estava acontecendo no Brasil com o que ocorria no resto do mundo.

“E foi essa crença que fez muitos acharem claro que Trump não seria eleito ou que o Brexit aconteceria”, continua o guitarrista. “E são as mesmas pessoas envolvidas, os mesmos tipos sombrios, como Steve Bannon, que estão com Trump, com o Brexit e com outros. A forma como Trump fala com o público é baixa, porque as pessoas não necessariamente acreditam em suas visões extremas e o tiram de maluco, porque ele fala uma coisa e depois fala o oposto dez minutos depois, como se usasse drogas”, prosseguiu, ampliando a discussão para a Inglaterra que ainda não havia saído da União Europeia.

“O Brexit é uma bagunça”, continua. “Infelizmente o partido trabalhista e o conservador são os únicos que importam, mas os conservadores brigam feito cão e gato, um quer um Brexit mais brando e outro quer um Brexit mais duro, e May fica desesperada no meio. Já o partido trabalhista não sabe o que quer. Se eles dissessem que não queriam o Brexit, de forma clara, seria uma outra situação, mas eles não têm certeza. Foi uma coisa maluca isso que o Cameron fez. Os conservadores estavam preocupados com a ascensão do nacionalismo que poderia tomar seus votos, então resolveram que era melhor abraçar alguma destas filosofias. Não se faz esse tipo de escolha…”

Ele se preocupava com a possibilidade de ser visto como um terrorista pelo simples fato de falar sobre o que queria em suas letras. “Eu nunca tinha pensado nisso, mas hoje é uma preocupação: será que este país vai permitir que eu tire um visto para tocar lá? Porque em muitos lugares em que tocamos, as letras são antitéticas em relação ao governo. Mas isso não aconteceu ainda”, dizendo-se especificamente preocupado em relação à turnê que o grupo faria no início do ano seguinte, para promover o disco Happy Now, lançado em fevereiro de 2019.

“Lançamos o single 'Ivanka' no streaming há pouco tempo e colocamos uma foto da Ivanka Trump na capa. Isso virou notícia nos EUA. Acordei e tinham vários emails perguntando se eu tinha visto que o Gang of Four havia saído no Washington Post. Eu não acreditava, mas cliquei no link, que dizia ‘banda pós-punk inglesa coloca Ivanka na capa de single’ e só, mas todos os jornais nos EUA foram atrás disso e repetiram a notícia. E eu pensei que em algum momento pode acontecer de alguém, no governo, pode dizer que não irá deixar que a gente entre nos Estados Unidos, ‘quem ele pensa que é, falando da filha do nosso presidente?”.

Quando pergunto sobre o papel das redes sociais no atual cenário, ele preferiu discorrer sobre a mídia tradicional. “Aquilo que antes era chamado jornalismo não existe mais. Antes era uma disciplina, em que você aprendia técnicas, e não falava bobagem. Fora que custa dinheiro e ninguém mais compra jornal.”

E ataca também a luta pela imparcialidade dos veículos tradicionais, ao citar o caso de sua esposa, Catherine Mayer, fundadora do Partido pela Igualdade das Mulheres na Inglaterra, quando é entrevistada pela BBC. “Eles têm essa regra sobre imparcialidade e se ela for entrevistada, eles têm de ter alguém do outro lado, que normalmente é um maluco misógino que fala que ‘já foi provado que o cérebro das mulheres é menor que o dos homens’”, riu, com algum nervosismo.

Quando o perguntei sobre impossibilidade de imparcialidade em tempos como os atuais, ele parou para pensar. “Boa pergunta. Me sinto meio nostálgico em relação ao tempo em que havia uma espécie de centro que não estava tão à direita nem à esquerda, acho que isso desapareceu.” Mas quando falo que esta nostalgia pode estar ligado ao fato de ele ser homem, branco e heterossexual, ele não titubeou para concordar. “Sim, pode ser! Porque nós sempre tivemos esses privilégios sim.”

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