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Cinema

Mostra de Tiradentes foi animadora, apesar das justificativas do júri

'Canto dos Ossos', de Petrus de Barros e Jorge Polo, ganhou o prêmio da seção Aurora

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Para um festival como o de Tiradentes, com momentos de criatividade e rigor surpreendentes, a premiação anunciada na noite de sábado não foi menos surpreendente.

“Canto dos Ossos”, de Petrus de Barros e Jorge Polo, ganhou o prêmio da mostra Aurora, dedicada a cineastas até o terceiro filme. Melhor que ele é a justificativa do júri, para quem “o filme aposta na imaginação como potência gestada coletivamente e acolhe seu caráter disjuntivo”. Queira-se com isso dizer o que quiser e que, com franqueza, não capto.

Cena do filme 'O Canto dos Ossos', de Petrus de Barros e Jorge Polo, que ganhou a mostra Aurora em Tiradentes
Cena do filme 'O Canto dos Ossos', de Petrus de Barros e Jorge Polo, que ganhou a mostra Aurora em Tiradentes - Divulgação

Mais tarde, diz o júri, o filme revela “epifanias que nos oferecem o intempestivo cristal de um segmento de tempo, de gesto, de susto privilegiado”. Não chego a compreender como o inoportuno seja uma qualidade do cristal, como o cristal possa ocupar uma parcela do tempo ou se confunda com um gesto ou mesmo causar algum tipo de sobressalto (exceto quando se parte).

Mas, enfim, tudo isso me parece tão incompreensível quanto o próprio filme, a menos que o descosido da narrativa seja promovido à categoria de originalidade. Em todo caso, houvesse um prêmio para palavrório disjuntivo, a justificativa do júri tinha boa chance de emplacar.

Admita-se: o filme parece ter passado por problemas vários de produção, e isso não significa que seus realizadores não possam vir a revelar suas qualidades no futuro. Admita-se também que a Aurora deste ano foi basicamente uma sequência de talentos ainda em estado larvar. A única e evidente exceção foi ”Cadê o Edson?”, de Dácia Ibiapina.

Já o prêmio Carlos Reichembach, concedido a “Yãmihex – As Mulheres Espírito”, faz todo sentido. Participava da melhor mostra do festival deste ano, a Olhos Livres, que trouxe trabalhos primorosos de Geraldo Sarno e Helena Ignez, entre outros. Na dúvida, premiou-se o filme de Sueli e Isael Maxakali.

É a primeira vez que vejo um filme em que os índios são sujeito e não objeto do olhar. No caso, a ação gira em torno de uma semana ritual da tribo Maxakali, cuja reserva fica no nordeste de Minas. 

Não vemos ali índios se queixando da desumana situação a que foram reduzidos, e sim jogos em que moças têm de molhar os rapazes, que se defendem com escudos de madeira (originalmente eram peles de animais, mas eles já não existem na reserva).

Em outro momento elas devem combater os rapazes vestidos como repulsivas lontras —espécie carnívora aquática—, para que possam, enfim, ter direito a pescar no rio.

Triste de fato nessa história é que a reserva indígena termina antes do rio. O rio pertence a criadores de gado da região que não lhes dão o direito de uso da água. Por isso, a sequência final, da pesca, foi filmada às pressas e, se bem entendi, clandestinamente. Explica-se assim o ar de tristeza sem fim que irrompe (como cristal intempestivo?) no rosto de certas velhas índias e que contrasta com a alegre desenvoltura das jovens.

O animador de “As Mulheres Espírito” é ver surgir ali um modo próprio de ver o mundo, marcado por planos longos e ágeis, que respeitam as determinações culturais (exemplo: não se pode filmar o interior da casa dos pajés).

Esse sentido do tempo, a opção por um “timing” próprio, que ignora o gosto ocidental pelos planos curtos (estão próximos das ideias de André Bazin, alguém sublinhou), são essenciais para sentirmos ali a manifestação cultural do “inteiramente outro”, para usar as palavras da filósofa Olgária Matos, mas também para entendermos, um pouco que seja, esse outro.

Uma manifestação muito significativa dos abismos culturais a que somos introduzidos: a palavra “cutxê” designa imagem. Algo, a que os índios tiveram acesso graças às duas câmeras digitais da reserva usadas para o filme.

Mas “cutxê” significa também espírito. Essa ambiguidade designa o caráter abstrato da imagem (algo não sólido, uma virtualidade), mas também pode nos dizer o que capta: não seres vivos, talvez, porém fantasmas (vale o sentido corrente, de espíritos presentes, mas também o freudiano, de expressão de desejos).

Por fim, o prêmio Helena Ignez para destaque feminino foi para a fotógrafa Lilis Soares, que esteve com três filmes na mostra. Antes de tudo, é uma maneira de celebrar a chegada com força das mulheres na direção de fotografia no Brasil, fenômeno recente, porém já consolidado.

É claro, o prêmio poderia ir para Helena Ignez por seu “Fakir”, mas seria talvez um pouco estranho (ou disjuntivo?) Helena Ignez ganhar o prêmio Helena Ignez.

É claro, poderia ir também para Dácia Ibiapina por seu belo e importante documentário. Premiou-se uma jovem fotógrafa e está bem assim.

Mas a passagem em branco de “Cadê o Edson?”, em contraste com ao acolhimento dos meios audiovisuais à maria-mole “Democracia em Vertigem”, essa celebração da derrota, nos fala bem da impotência imaginativa (e não só) das forças que aspiram combater o bolsonarismo. Ainda assim, ressalte-se, a Mostra de Tiradentes deste ano foi mais que animadora. 

O crítico viajou a convite do festival

Erramos: o texto foi alterado

O nome da cineasta é Dácia Ibiapina, e não Nádia Ibiapina. O texto foi corrigido. 

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