Muita gente ainda restringe o chamado cinema político às narrativas sobre corrupção e malfeitos nas altas esferas do poder ou aos filmes de denúncia. Gêneros como o terror e a ficção científica, por sua vez, raramente desperdiçam o álibi do fantástico para comentar, criticar ou ironizar as mazelas bem reais. “Zombi Child” aproxima essas duas facetas sem apagar sua heterogeneidade.
O longa francês dirigido por Bertrand Bonello teve sua estreia nos cinemas suspensa pelo fechamento das salas e chega agora às plataformas digitais. Pena, pois a sala de casa não é um espaço muito adequado para se perceber as nuances plásticas com as quais Bonello amarra a trama composta de duplos e de dubiedades.
Dois lugares e dois tempos sugerem algum espelhamento de dois blocos narrativos. Um viaja ao Haiti nos anos 1960, o outro passeia pelos corredores de um colégio feminino na França de hoje.
A descontinuidade temporal e espacial faz ecoar outro tipo de conexão, mais simbólica e imaginária, como é costume nas histórias sobre maldição e filiação mágica.
No passado haitiano estamos sob o controle dos Tonton Macoute, braço miliciano do ditador Papa Doc.
Um feitiço vodu transforma um homem negro em zumbi, força seu retorno à escravidão numa plantação de cana. Depois de comer carne, ele recupera parcialmente a vontade e vagueia na natureza meio morto, meio vivo.
No presente francês, uma garota haitiana entra para um internato católico, branco e elitista. Uma colega fascinada pela diferença da jovem estrangeira a introduz em uma irmandade e, sempre atraída pela alteridade, busca na feitiçaria vodu a promessa de resgatar uma paixão.
Se o roteiro mais parece uma mistura de fiapos, a escrita de Bonello reafirma suas virtudes no modo como prolonga os fios por meio das imagens, organiza os contrastes entre os quentes escuros tropicais e a fria luminosidade europeia.
A estética abstrata e distanciada do cineasta pode não agradar os fãs do terror tradicional ou quem busca no gênero um pacote pronto de medos. O propósito de “Zombi Child” não é assustar, mas atualizar a dimensão política dos zumbis, monstros que surgiram no cinema nos idos do fim dos impérios coloniais.
Não se trata de contrapor explorados e exploradores nem de simplificar os mil tons do racismo a fim de gerar indignação, recurso do cinema retórico. Aqui, o colonialismo e a escravidão não estão neutralizados nos livros de história, o passado é um morto-vivo que contamina o presente e que devora seu disfarce multicultural.
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