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Cinema

Cinema de Luis Buñuel parece ter sido feito para o mundo da Covid-19

Se pudesse ver como sobrevivemos hoje, diretor de 'O Anjo Exterminador e 'O Alucinado' teria muito do que rir

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Em dado momento, Luis Buñuel dizia não se incomodar com a morte. Queria apenas ter o direito de abrir uma janelinha lá em cima, de tempos em tempos, para saber como iam as coisas cá embaixo.

É uma afirmação arriscada, pois supõe que o cineasta espanhol iria para o céu depois de uma vida dedicada ao anticlericalismo. Mas, supondo que a janelinha se abrisse, don Luis teria muito do que rir. Pois alguns de seus filmes parecem ter sido feitos para o mundo em que vivemos (ou, melhor, sobrevivemos).

Pensemos no seu “O Anjo Exterminador”, de um já distante 1962. Ali, um grupo de burgueses se vê confinado a um ambiente do qual não pode sair, embora nenhuma barreira física se oponha a eles.

Cena de 'O Anjo Exterminador', de Luis Buñuel
Cena de 'O Anjo Exterminador', de Luis Buñuel - Reprodução

Sim, estamos muito perto do confinamento a que a Covid-19 nos impõe hoje, não? Porque algo invisível como um vírus se debruça sobre eles, assim como ocorre hoje, quando nos submetemos a receber pães, legumes e frutas em casa, usando uma máscara (às vezes duas) e luvas para tocar na maquininha de pagar com o cartão.

Há diferenças, porém. Atualmente burgueses e classe média podem estar diante do anjo exterminador. Mas são os pobres que, fatalmente, o enfrentam todos os dias —aqueles que não podem escolher entre ficar ou sair, que não podem ficar em casa porque o espaço é tão restrito que o perigo de transmissão da pestilência é maior do que se estiverem na rua.

Ainda assim, o que vivemos não está muito longe da visão de Buñuel e do progressivo abandono das convenções sociais pelos burgueses aprisionados de seu “Anjo”.

Pois era nos burgueses que pensava o filme. Afinal, são eles e a classe média que correm enlouquecidos para a praia quando pinta um feriado que o desespero dos governantes antecipou para que todos ficassem em casa. Precisam de ar, mesmo que seja para contaminar ou serem contaminados pelo próximo.

Não são tão diferentes, é verdade, dos pobres com seus bailes funk lotados de vírus —chega uma hora em que, parece, já não faz diferença. Também entre os pobres a desrazão vence a razão.

Seria injusto pensar que só “O Anjo Exterminador” viria à lembrança de Buñuel caso ele abrisse a janelinha. O que pensar de “A Idade do Ouro”, de 1930, por exemplo?

O burguês que se diverte atirando no menino que está no jardim não lembra o insano de Perdizes que dá tiros quando alguém faz panelaço contra o governo? A festa onde pessoas pegam fogo na indiferença geral ou a vaca que atravessa a sala sem que os coquetéis por isso se interrompam não lembram alguma coisa bem perto de nós? Ou, ainda, em nós?

Sim, “A Idade do Ouro” é um filme da desordem dos sentidos, mas também da desorganização da ordem, da inversão de valores —onde o Cristo é, afinal, o grande mestre das maiores orgias.

Mas é possível lembrar de mais faces de Buñuel na hora da peste. Fiquemos com um bem do momento –“O Alucinado”, de 1953, a história daquele homem ilibado sexualmente e severo, incapaz de perdoar uma falta de seus servidores ou subordinados, com um comportamento particularmente misógino.

Depois que encontra a mulher dos seus sonhos e se casa com ela, sua vida se torna um tormento. Sua promiscuidade reprimida vem à tona e é projetada na mulher, que não pode dar um passo sem que ele suspeite de todos os seus movimentos.

Um homem que destrata a mulher num momento com brutalidade para logo depois se arrepender. Ou que vê em qualquer outra pessoa um rival a ser eliminado. Talvez esse filme, que Jacques Lacan catalogou como o mais relevante estudo sobre a paranoia, também tenha muito a ver com o momento atual. Não no mundo, mas aqui mesmo, na nossa vizinhança.

Pensando bem, o que Buñuel teria para ver aqui embaixo seria bem deprimente. Lembraria não o libertário surrealismo do seu “Anjo Exterminador”, mas o desencantado absurdo do teatro do pós-Guerra —aquele, por exemplo, em que dois tontos esperam infinitamente por um redentor chamado Godot, que nunca chega, que talvez não exista, que não faz sentido esperar.

Godot pode se chamar Deus, é claro. Mas nas atuais circunstâncias pode se chamar cloroquina, respirador em UTI, banco para fazer um empréstimo ou ministro capaz de agilizar a distribuição de R$ 600 rapidamente para quem nada tem.

Nessa hora Buñuel fecharia a sua janelinha. Já Beckett abriria a dele.

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