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Disputa judicial no ramo da literatura erótica desperta questão legal grave

Expansão de fanfics, histórias com personagens e tramas de outras obras da cultura pop, traz conflitos de interesse

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Nova York | The New York Times

Addison Cain estava morando em Kyoto, onde trabalhava como voluntária em um templo e estudava a religião japonesa. Ela deveria supostamente estar trabalhando em um livro acadêmico sobre suas pesquisas, mas começou a escrever fan fiction intensamente erótica sobre Batman.

Aconteceu quase que por acaso. Era 2012, e Cain –que cresceu no condado de Orange, no estado americano da Califórnia, sob outro nome– tinha terminado a universidade três anos antes e vivia sozinha no exterior, com muito tempo livre. Seu domínio do japonês era precário, e os títulos em inglês nas livrarias custavam muito caro.

Por isso, Cain começou a ler coisas que encontrava de graça online e não demorou a descobrir o gênero fanfic –histórias escritas por amadores que tomam personagens e tramas de empréstimo a franquias da cultura pop.

Cain começou a devorar obras que se passavam no mundo da trilogia “Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan. Decidiu escrever por conta própria contos estrelados por Bane, um dos inimigos de Batman, retratado como um anti-herói sexy, e postar as obras gratuitamente online. Cain logo conquistou fãs e se tornou uma espécie de estrela em seu subgênero.

A série "Alpha's Claim", de Addison Cain
A série "Alpha's Claim", de Addison Cain - Blushing Books/The New York Times

Poucos anos mais tarde, morando em Arlington, no estado da Virgínia, e trabalhando como bartender, ela começou a pensar em transformar seu hobby em negócio. Seu marido e pais a desencorajaram de tentar uma ideia nada prática como essa.

Os agentes literários que ela procurou foram igualmente negativos, rejeitando ou ignorando as abordagens de Cain por mais de um ano. Mas um colega escritor ajudou Cain a enviar um manuscrito à Blushing Books, uma pequena editora de Charlottesville. Um editor leu o texto na mesma noite e enviou um contrato à autora no dia seguinte.

No segundo trimestre de 2016, ela publicou “Born to Be Bound”, uma adaptação de seus trabalhos de fanfic. A história acontece em um futuro no qual a maior parte da humanidade morreu como resultado de uma praga, e os sobreviventes vivem sob um domo, divididos em grupos –uma alcateia de alfas dominantes, e grupos de betas neutros e ômegas submissos. Um poderoso e bruto alfa chamado Shepherd aprisiona uma mulher ômega chamada Claire, e eles fazem sexo feroz e lupino.

Os fãs de Cain publicaram quase cem resenhas positivas na Amazon, o suficiente para lhe conferir alguma visibilidade. “Bruto, sem frescuras e deliciosamente imundo”, dizia uma das críticas elogiosas.

O livro de estreia foi um sucesso. Cain correu a publicar diversos outros títulos e sua série inicial faturou cerca de US$ 370 mil, segundo a editora.

Nos dois anos seguintes, Cain continuou publicando rapidamente textos, produzindo romances em intervalos de alguns poucos meses uns dos outros e reaproveitando seus velhos trabalhos de fan fiction. Isso manteve aceso o interesse dos algoritmos da Amazon pelos seus livros e fez do nome de Cain uma marca reconhecível.

“Teste as águas da literatura erótica”, aconselhou a escritora aos ouvintes em um podcast de ficção científica e fantasia, em 2016. “A única coisa a fazer aqui é ganhar dinheiro.”

Então, em 2018, Cain ouviu falar sobre uma escritora em ascensão no gênero de fantasia que usava o pseudônimo Zoey Ellis e tinha publicado uma série erótica de fantasia com uma premissa que parecia estranhamente similar à de seus livros. As histórias envolviam um casal formado por um alfa e uma ômega e muito sexo lupino.

"Myth of Omega", de Zoey Ellis, publicado no início de 2018
"Myth of Omega", de Zoey Ellis, publicado no início de 2018 - Quill Ink Books/The New York Times

Quanto mais Cain descobria sobre “Myth of Omega” e o primeiro livro da série, “Crave to Conquer”, mais indignada ela ficava. Nos dois livros, homens alfa são atraídos pelo aroma de mulheres ômega e as tomam como reféns. Nos dois livros, as mulheres tentam sem sucesso suprimir os feromônios e depois cedem ao instinto de acasalamento. Nos dois livros, os casais se farejam, rosnam e ronronam; se aninham em espaços semelhantes; mordem os pescoços um do outro para deixar marcas de “propriedade”; e experimentam um fenômeno chamado “enlace”, envolvendo uma característica peculiar dos falos lupinos.

Cain insistiu em que a Blushing Books fizesse alguma coisa. A editora enviou notificações de violação de direitos autorais a meia dúzia de empresas de varejo online, afirmando que a história de Ellis era uma cópia, com cenas “quase idênticas às do livro de Addison Cain”.

A maior parte das empresas, entre as quais Barnes & Noble, iTunes, Apple e Google Play, removeu as obras de Ellis imediatamente. Os leitores de Cain se mobilizaram em sua defesa. “Isso é um plágio do trabalho de Addison Cain”, escreveu um leitor irritado no site Goodreads. “Fico decepcionado com essa autora, e espero que Cain a acuse legalmente por roubar seu trabalho. Que vergonha!”

É difícil imaginar que dois escritores pudessem criar independentemente cenários de fantasia tão bizarramente específicos. E na verdade, nenhuma das duas autoras o fez. Ambas criaram suas tramas usando elementos comuns oriundos de um movimento literário florescente no ramo da fanfic e conhecido como “Omegaverse”.

A disputa entre Caine e Ellis é um microcosmo, repleto de perversões, das táticas em uso corrente na indústria de fanfic. À medida que o gênero se comercializa, autores defendem agressivamente o seu ganha-pão, às vezes recorrendo a uma lei de 1998, a Lei Milênio de Direitos Autorais Digitais, para solicitar a empresas de varejo online que retirem de circulação os trabalhos de concorrentes. Ao fazer uma queixa, um criador precisa “acreditar de boa fé” que sua propriedade do trabalho em questão tenha sido infringida.

Mas o que isso significa quando o material fonte na verdade provém de um coletivo que opera em regime de “crowdsourcing”? A questão está levando os integrantes da comunidade do Omegaverse a tomar partido entre Cain e Ellis –e um juiz federal americano da Virgínia, que está estudando as queixas e as consequências, em breve terá de fazer o mesmo, decidindo sobre uma reivindicação que envolve valor superior a US$ 1 milhão, equivalente a R$ 5,3 milhões.

Bem-vindo ao Omegaverse, onde homens podem engravidar

Para deslindar a disputa no Omegaverse, é útil compreender suas origens em um universo literário paralelo –o vasto, desregrado, diverso, exuberante e frequentemente pornográfico mundo da fan fiction.

Depois de surgir décadas atrás em zines cuja especialidade era “Star Trek”, a fanfic floresceu quando a internet facilitou que consumidores especialmente dedicados de cultura pop criassem histórias uns para os outros, e as encontrassem online.

Surgiu uma imensa variedade de subgêneros, do “slash” (em que dois personagens homens formam um par romântico, como Sherlock Holmes e o Doutor. Watson) a variedades mais exóticas como o “mundane AU” (um universo alternativo no qual personagens mágicos vivem no mundo real –por exemplo, Harry Potter estuda em um colégio interno regular e tem os problemas normais de um adolescente).

Embora alguns escritores tradicionais desdenhem dos autores de fanfic como parasitas criativos, a realidade é que não existe maneira prática de deter a prática. Obras como essas são legais desde que os escritores as postem gratuitamente e não tentem vender histórias cuja base seja material protegido por direitos autorais.

Mas havia dinheiro demais em jogo para que o gênero se mantivesse como amador para sempre.

“Cinquenta Tons de Cinza”, a série de imenso sucesso de E. L. James, que vendeu mais de 150 milhões de cópias, surgiu como fanfic baseada na saga “Crepúsculo” de histórias de vampiros, escrita por Stephanie Meyer. Ao substituir personagens sobre os quais outra autora detinha direitos autorais por novos protagonistas nominalmente originais –uma prática conhecida como “apagar o número de série”–, escritores de fanfic como James, Christina Lauren e Tara Sue Me [um pseudônimo que brinca com a frase em inglês para “me processe”] ingressaram no mercado de literatura comercial.

À medida que mais autores de fanfic entram no mercado comercial, surgem disputas de território.

“A fan fiction fez com que autores e editoras percebessem que existe um mercado próspero para esse tipo de material”, disse Rebecca Tushnet, especialista em direitos autorais na Escola de Direito da Universidade Harvard. “O volume é muito maior, e por isso a oportunidade de conflitos também aumenta.”

O universo específico de fanfic que causou a disputa entre Cain e Ellis emergiu cerca de uma década atrás, quando fãs devotados de “Supernatural”, uma série da rede de TV CW, começaram a escrever histórias nas quais os dois protagonistas eram amantes. Um seria o macho alfa dominante. O outro, um ômega feminizado, muitas vezes capaz de engravidar –uma vertente conhecida como MPreg. Variantes sexuais caninas, e mais tarde lupinas, foram incorporadas.

A premissa era imensamente popular, e as variantes foram rapidamente adotadas por autores que escreviam sobre outros universos fantasiosos, entre os quais os das séries “Hannibal”, da rede NBC, e “Teen Wolf”, da MTV. O vasto conjunto de trabalhos que surgiu dessas vertentes veio a ser conhecido como Omegaverse, com regras, elementos de trama e terminologia próprios.

Algumas das histórias do Omegaverse envolvem licantropos (lobisomens), vampiros, metamorfos, dragões e piratas espaciais, e outras envolvem seres humanos normais. Mas virtualmente todos os casais do Omegaverse apresentam um comportamento semelhante ao dos lobos. Os alfas “se scasalam” e os ômegas entram no cio, liberando feromônios que causam desejo feroz nos alfas.

Um traço fisiológico peculiar das histórias do Omegaverse é o do “enlace”, derivado de uma característica real do pênis dos lobos, que incha durante o intercurso e faz com que os dois animais fiquem presos um ao outro, o que aumenta a chance de inseminação.

O apetite por essas histórias é grande e está crescendo. Nos últimos dez anos, mais de 70 mil histórias passadas no Omegaverse foram publicadas no site de fan fiction Archive of Our Own. Com o avanço de sua popularidade, o Omegaverse transcendeu as associações com as séries originais e se tornou um gênero estabelecido por conta própria.

Escritores começaram a publicar histórias sobre o Omegaverse com personagens e cenários originais, e a buscar lucros com sua venda. Na Amazon, existem centenas de romances à venda, com títulos como “Pregnant Rock Star Omega”, “Wolf Spirit: A Reverse Harem Omegaverse Romance” e “Some Bunny to Love: An M/M MPreg Shifter Romance”, uma história implausível que envolve um macho alfa que se transforma em coelho.

É esse o panorama comercial próspero que serve de pano de fundo à acusação de Cain de que Ellis roubou seu material. Já Ellis vê essa acusação como absurda –e está preparada para levar a disputa ao tribunal.

A 'mamãe gato' contra-ataca

Encontrei Ellis para um café em um hotel perto da estação ferroviária de Paddington, em Londres, no ano passado. Ela não parece alguém que escreveria ficção erótica sombria, ousada e muitas vezes violenta. É jovem, animada e trabalha no ramo de educação em Londres, o que é um dos motivos para que não publique trabalhos sob seu nome real.

Na maioria dos dias, ela acorda às quatro da manhã para escrever, e depois vai para a escola em que trabalha. Na sua página de autora na Amazon, ela se descreve como uma “mãe de gatos” e diz que “adora tensão sexual que salta da página”.

Ellis diz que começou a escrever fanfics em 2006. No começo, histórias passadas no universo de Harry Potter, e depois passou a acompanhar outros universos, entre os quais o da série “Sherlock”, da BBC, estrelada por Benedict Cumberbatch; isso terminou por levar a autora ao Omegaverse. O gênero era diferente de qualquer coisa que ela já tivesse visto. Ellis passou a arriscar alguns trabalhos originais, e no final de 2017, começou a trabalhar na série “Myth of Omega”.

Passado em um mundo de fantasia medieval, “Crave to Conquer” é protagonizado por um imperador alfa que se torna obcecado por uma sedutora espiã ômega chamada Cailyn. Ela resiste aos esforços dele usando magia para esconder o aroma de seus feromônios, mas termina sucumbindo ao imperativo biológico.

Para atrair os fãs do Omegaverse e de ficção romântica sombria, Ellis construiu sua narrativa em torno dos elementos padrão do gênero –comportamento e acasalamento lupinos e uma dinâmica de dominação e submissão ousada. (Na terminologia da fanfic, alguns de seus cenários sexuais seriam designados como “dub-com”, ou seja, de consentimento duvidoso.)

“Você precisa usar as figuras recorrentes do Omegaverse para ser reconhecida pelos fãs do gênero”, disse Ellis. “Crave to Conquer” e sua continuação, “Crave to Capture”, foram publicados no começo de 2018 pela Quill Ink Books, uma empresa que ela fundou, em Londres. Leitores resenharam a série de forma muito positiva no Goodreads e na Amazon, definindo as obras como “um sensacional Omegaverse novo” e “o melhor Omega até agora”.

No final de abril de 2018, Ellis recebeu um email de um leitor que havia tentado comprar um de seus livros na Barnes & Noble e sido informado de que o trabalho não estava mais disponível. Ela descobriu que todos os seus livros do Omegaverse tinham sido removidos das grandes lojas, por causa de uma acusação de violação de direitos autorais apresentada por Cain e sua editora. Ellis ficou desconcertada.

“Não consegui entender de que forma uma história que escrevi usando temas reconhecidos de um universo compartilhado, a fim de narrar uma situação muito diferente de tudo mais que estava disponível comercialmente, podia ser alvo de uma queixa como aquela”, disse Ellis. “Existem momentos e cenários que parecem quase idênticos, mas se trata de temas usados em centenas de histórias.”

O advogado de Ellis e sua editora apresentaram petições em contrário aos sites que haviam removido seus livros. Alguns deles demoraram semanas para repor os livros no mercado; em outros a demora foi de meses. Não havia maneira de recuperar as vendas perdidas.

“Como escritora iniciante, eu estava ganhando ímpeto, e esse ímpeto foi perdido”, disse Ellis. Ela também se preocupava com a possibilidade de que ser definida como plagiária prejudicasse sua reputação.

Ellis decidiu abrir um processo. “Tudo estaria em questão –minha integridade seria posta em questão, minha capacidade de escrever e contar histórias– tudo estaria em questão se eu não contestasse aquelas acusações”, disse Ellis.

No final de 2018, a Quill Ink abriu um processo contra a Blushing Books e Cain em um tribunal federal em Oklahoma, onde a distribuidora digital de Ellis está sediada, solicitando US$ 1,25 milhão em indenização por difamação, interferência com a carreira da escritora e por apresentação de falsas notificações de violação de direito autoral. No processo, os advogados da Quill Ink argumentam que “ninguém é dono do ‘omegaverse’ ou dos diversos temas que definem o ‘omegaverse’”.

Os advogados de Ellis consideravam estar em posição forte. Mas encontraram dificuldades para identificar um caso anterior que tratasse da possível proteção por direitos autorais a temas usadas comumente na fan fiction.

“Saímos em busca de casos para ver se os tribunais já haviam lidado com algo parecido antes”, disse Gordon Lincecum, advogado que representa a Quill Ink e Ellis. “Mas não identificamos qualquer caso”.

'Uso malévolo da Lei Milênio'

A intensa rivalidade não se limita aos escritores do Omegaverse. À medida que a publicação online de livros se tornava mais competitiva –hoje há milhões de livros eletrônicos disponíveis na Amazon, ante 600 mil em 2014–, alguns autores do gênero passaram a agir com agressividade para dominar seu nicho literário.

No ano passado, uma escritora que trabalhava em um popular subgênero de literatura romântica conhecido como “harém reverso/bully da escola” –que envolve uma personagem adolescente sendo cortejada por diversos pretendentes masculinos agressivos– acusou outra escritora de copiar seus livros e exigiu que ela retirasse seus trabalhos das lojas. A autora acusada removeu seu trabalho da Amazon por algum tempo, mas o recolocou na loja depois de consultar um advogado.

Outros autores tentaram recorrer a marcas registradas para atacar rivais. Escritores tentaram registrar como marcas frases genéricas como “matador de dragões” e até mesmo a palavra “escuridão”. Em 2018, Faleena Hopkins, escritora que publica livros independentes, causou escândalo ao registrar como marca a palavra “cocky” e notificar outros escritores que a usassem em seus títulos.

A Amazon removeu temporariamente alguns livros, como “Her Cocky Firefighters” e “Her Cocky Doctors”. Depois de diversos processos malsucedidos contra outros autores, Hopkins desistiu.

Como no caso Cockygate, o caso do Omegaverse revela com que facilidade as leis de propriedade intelectual podem ser transformadas em arma por autores que busquem derrubar seus rivais.

Nos termos da Lei Milênio de Direitos Autorais, indivíduos ou empresas podem enviar notificações a varejistas solicitando a retirada de obras sempre que tiverem a convicção razoável de que seus direitos foram infringidos. Os varejistas estão protegidos contra envolvimento nos litígios relacionados caso removam o material, e muitos sites atendem a pedidos referentes a direitos autorais sem investigar as queixas. Advogados dizem que o sistema fica exposto a abusos facilmente.

“Vimos inúmeros exemplos de pessoas que enviam notificações de violação de direitos autorais quando é evidente que não acreditam que tenha havido violação”, disse Mitch Stoltz, advogado da Electronic Freedom Foundation, uma organização sem fins lucrativos que defende a liberdade de expressão online. “Não há muita prestação de contas.”

Em 21 de maio, o Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos divulgou um relatório detalhando como a Lei Milênio, adotada 22 anos atrás, fracassou em acompanhar o ritmo do anárquico ecossistema digital, porque as plataformas recebem volume esmagador de pedidos de retirada de conteúdo.

Entre 1998 e 2010, o Google recebeu menos de 3 milhões de notificações desse tipo. Em 2017, foram 880 milhões –um aumento de mais de 29.000%, de acordo com o relatório. Muitas das solicitações são legítimas, mas o relatório aponta que outros motivos incluem "propósitos anticompetitivos, prejudicar uma plataforma ou o consumidor, ou tentar moderar formas de expressão que o detentor de direitos desaprova”.

A Amazon concorda em que isso é um problema. Com a ascensão da edição independente de livros, surgiu um dilúvio de conteúdo digital, e autores recorrem frequentemente a notificações de violação de direitos autorais a fim de remover concorrentes.

Em uma audiência pública realizada pelo Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos em 2016, Stephen Worth, diretor jurídico associado da Amazon, disse que queixas fraudulentas sobre direitos autorais apresentadas por escritores “respondem por mais de metade das notificações” sobre direitos autorais que a companhia recebe.

“Precisamos resolver o problema das notificações usadas impropriamente, com fins nocivos, para atacar outras obras”, disse ele.

No caso do Omegaverse, a acusação de violação de direito autoral movida por Cain contra Ellis é vista como especialmente tênue por alguns observadores. “Nenhuma das duas é muito original”, disse Kristina Busse, autora de “Framing Fan Fiction”, que escreveu ensaios acadêmicos sobre o Omegaverse e depôs em favor de Ellis no caso, como especialista. “As duas roubaram ideias da ficção de fãs e alegorias que circulam livremente.”

Os especialistas em propriedade intelectual afirmam que a proteção de direitos autorais se aplica à expressão de ideias por meio de uma sequência específica de palavras, mas não cobre temas literários comuns ou tramas recorrentes na literatura.

Um escritor de romances de mistério, por exemplo, não pode invocar direito autoral sobre a ideia de um cadáver encontrado no primeiro capítulo de um livro ou sobre a ideia de capturar o criminoso no final.

Mas o caso do Omegaverse provavelmente é a primeira ocasião em que esses argumentos judiciais foram invocados em uma disputa sobre trabalhos que surgiu de um conjunto de obras de fanfics geradas informalmente por milhares de escritores.

“Na fan fiction, há um uso comum e livre de temas, componentes e tramas”, disse Anne Jamison, especialista em fanfic e professora associada de inglês na Universidade do Utah, que encara com ceticismo a ideia de que as alegorias comuns do Omegaverse possam ser sujeitadas a direitos autorais. “Existe uma linha indistinta entre o que é trabalho de alguém e o que é material comum.”

'Não quero que ela ganhe dinheiro algum'

Ellis não foi a primeira figura do Omegaverse que Cain acusou de plágio. Em março de 2016, ela escreveu um post no Facebook acusando outra autora, que escrevia sob o pseudônimo Dragon’s Maiden, de ter copiado pelo menos 15 elementos da trama de seu romance “Born to Be Bred”.

Em mensagem a Cain, que esta postou no Facebook, a escritora acusada nega ter roubado qualquer coisa e argumenta que “existem algumas semelhanças", mas não acredita que "não vão além de traços comuns dos lobisomens e do comportamento real dos lobos”.

Mas depois de ser acusada de plágio em comentários online, Dragon’s Maiden, que vive no estado americano do Wisconsin, retirou sua história da internet. “Os fãs dela começaram a me atacar, mesmo que nossas histórias, embora ambas se passem no Omegaverse, não fossem nada semelhantes”, disse a escritora rival em entrevista.

Dois anos mais tarde, Cain e sua editora apresentaram notificações pedindo a retirada dos dois primeiros romances da série “Myth of Omega”, de Ellis. Cain também pediu à editora que apresentasse uma notificação de violação de direitos autorais sobre um romance de Ellis que nem tinha sido lançado.

“O terceiro livro precisa cair, também. Não quero que ela ganhe dinheiro algum com essa série”, escreveu Cain à Blushing Books em abril, de acordo com documentos judiciais.

Ela também queria impedir Ellis de publicar uma nova série derivada passada no Omegaverse e se comunicou via email com sua editora perguntando o que podiam fazer. Bethany Burke, editora da Blushing Books, respondeu com ceticismo.

“O problema –como você diz– é que você não é dona do Omegaverse”, escreveu ela. “Não sei que mecanismos poderíamos usar para bloqueá-la completamente como autora, a não ser que você deseje tentar registrar o Omegaverse como marca. (O que poderia ser possível).”

A mensagem, apresentada como parte da documentação do processo, provavelmente não ajudará Cain no tribunal. Ela mesma não vem servindo como sua melhor defensora. Em depoimento no ano passado, Cain afirmou que a sobreposição entre suas obras e as de Ellis ia além dos elementos do Omegaverse.

“Não tem nada a ver com temas, nada a ver com o Omegaverse, mas sim com semelhanças de trama”, ela disse. Mas quando solicitada a citar exemplos específicos, Cain declarou que não conseguia recordar qualquer um, acrescentando que não tinha feito uma comparação estrita porque isso a incomodaria demais.

“Foi difícil para mim ler as duas coisas lado a lado porque me senti violada”, disse ela.

Mas Cain continua a insistir no processo. “O roubo de minha obra foi devastador”, ela escreveu em uma mensagem de Facebook a seus seguidores no mês passado. “Infelizmente, agora estou enfrentando retaliação por fazer o que tenho direito legal de fazer, ou seja, impedir o uso não autorizado de minhas obras”.

Mais de 70 fãs escreveram comentários encorajadores, pontuados por emojis com imagens de corações e GIFs de gatos zangados. “É enfurecedor que ela possa levar isso adiante quando foi ela que roubou seu trabalho”, escreveu um dos fãs.

Cain, que agora vive na Virgínia com o marido e a filha de dois anos do casal, disse por intermédio de seu advogado, em um email, que ela discorda das acusações apresentadas contra ela, mas se recusou a discutir as queixas específicas, afirmando que o processo está em curso.

O maior desdobramento do caso até agora é que a Blushing Books não está apoiando Cain em sua defesa. No ano passado, a editora admitiu que não havia acontecido plágio ou violação de direitos autorais, e uma decisão judicial contrária à empresa foi registrada. A editora pagou uma indenização de valor não revelado a Ellis e à Quill Ink. (Cain agora publica seus livros independentemente.)

Ellis e sua editora abriram novo processo contra Cain na Virgínia, acusando a autora de instruir sua editora a enviar falsas notificações de violação de direitos autorais ao varejo, com intenções nocivas. Os advogados de Cain negam a acusação, e convocaram escritores, blogueiros e leitores como testemunhas.

Se o juiz, ou um júri, considerar Cain culpada, o caso seria uma mensagem de que a Lei Milênio de Direitos Autorais não pode ser alvo de abusos, por escritores excessivamente agressivos no recurso à Justiça.

Por outro lado, uma decisão nesse sentido significaria que os autores de histórias genuinamente originais teriam uma alavanca legal a menos para defender suas obras. E uma vitória de Cain encorajaria um conflito aberto, encorajando escritores a atacar concorrentes e afirmar formalmente sua propriedade sobre trechos do universo da fanfic e temas comuns na ficção popular.

O processo está em curso, e uma audiência prévia com um juiz está marcada para junho. Enquanto isso, o Omegaverse continua a prosperar. Este ano, mais de 200 romances novos do gênero foram publicados na Amazon.

O lote mais recente recorre a todos os gêneros de literatura e todas as alegorias imagináveis –romances entre metamorfos paranormais, romances MPreg paranormais, romances de harém reverso, romances de ficção científica entre alienígenas.

Há histórias de fantasia alfa-ômega protagonizadas por feiticeiras, unicórnios, dragões, vampiros, lobos metamorfos, ursos metamorfos e lobos metamorfos versus ursos metamorfos. Também há romances relativamente simples no Omegaverse, estrelados por cozinheiros, dentistas, membros de fraternidades universitárias, padeiros, guarda-costas e bilionários. Em um multiverso repleto de histórias, os temas continuam a evoluir, inexauríveis.

Tradução de Paulo Migliacci

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