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Modelos lideram denúncias de racismo na moda, e casos aludem até a escravidão

Tops e nomes fortes da indústria de editoriais e desfiles acusam discriminação das coxias aos holofotes do setor

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São Paulo

Até que Laís Ribeiro se tornasse uma das maiores modelos do mundo, a pergunta se ela era indígena, negra ou parda marcou sua ascensão no Brasil. A alcunha de “exótica” em seu país —no exterior, ela sempre foi negra— escondeu por anos a relutância do mercado em ver a sua cor. Hoje, uma das “angels” da grife Victoria’s Secret, ela diz que, “no íntimo”, sabia “ser tudo isso, misturado, ao mesmo tempo”.

A questão de sua cor é só a parte mais visível de um sistema fashion marcado pelo racismo do chão de fábrica à produção editorial. A top conta ter engolido calada as agressões para sobreviver no mercado.

“E quando se é uma modelo negra iniciante, você precisa lidar com o preconceito”, diz Ribeiro. Ela agora se junta às dezenas de tops e profissionais dos bastidores que, desde o início de junho, decidiram encampar em uníssono esse combate nas redes sociais.

​​Na esteira dos recentes protestos antirracistas pelo mundo, eles relataram abusos nos bastidores de desfiles, campanhas e grifes de peso da moda.

Reinaldo Lourenço e Gloria Coelho foram os primeiros expostos no Instagram da modelo Thainá Santos. Desprezo nas seleções, olhares enviesados dos estilistas e comentários sobre negros “não se encaixarem no perfil da marca” eram recorrentes nos relatos.

Fizeram coro as modelos Camila Simões, Cindy Reis e Natasha Soares, esta última numa live com o fundador da São Paulo Fashion Week, Paulo Borges. A pauta era racismo, e ela aproveitou para contar sua experiência de silenciamento.

“Existe muito a questão do ‘você é lindo, mas em silêncio’. A gente é chamado para administrar crises. Quando uma marca faz algo racista, ela contrata um negro”, ela disse.

Logo surgiram contas virtuais, como a Moda Racista, que reúne denúncias sem incluir a versão do lado acusado. Marcas como Ellus, Le Lis Blanc, Animale, Riachuelo e Ratier, além do ex-casal de estilistas e seus produtores, entraram na mira dos posts anônimos.

Lourenço entrou na Justiça para tentar derrubar a página. Não conseguiu, mas ganhou o direito de saber a identidade do autor, que excluiu a conta. A semente, no entanto, havia sido plantada, e outras duas páginas passaram a servir de tribunal virtual —o Moda Racista Vive e o Racismo na Moda ainda recebem denúncias.

A ausência de negros nas passarelas não é novidade no país. O que se soube agora foi como essa falta de representatividade se desenrola nas coxias desde que essa indústria se viu obrigada a rever, aos olhos da lei, a imagem branca demais que vendia a um país de ascendência indígena e africana.

Em 2008, este jornal levantou a questão ao cobrir a São Paulo Fashion Week. No ano seguinte, o evento foi obrigado a firmar um termo com o Ministério Público para recomendar às marcas que ao menos 10% dos modelos fossem desses grupos étnicos.

Dois anos depois, houve uma melhora. Mas, dez anos depois, uma nova reportagem concluiu que só marcas menores e independentes cumpriam o dever. Naquele ano, Gloria Coelho, Lino Villaventura, Osklen e Reinaldo Lourenço foram as marcas menos diversas da passarela.

Coelho, que assim como Lourenço não quis se manifestar agora nem então, tinha só 4% dos looks desfilados por negros em 2018. A estilista se limitou a enviar a mesma nota publicada em suas redes logo que as acusações vieram à tona, pedindo desculpas e prometendo rever as suas práticas.

Na época dos primeiros questionamentos, há mais de dez anos, porém, Coelho deu uma opinião. “Na Fashion Week já tem muito negro costurando, muitos com mãos de ouro, fazendo coisas lindas, assistentes, vendedoras, por que têm de estar na passarela?”

Mas essas “mãos de ouro” também são alvo do racismo.

Uma das primeiras negras modelistas da costura nacional com preparo técnico é Maria do Carmo Paulino. Única negra de sua turma formada em desenho industrial nos anos 1990, ela passou por marcas pequenas até chegar à Ellus. Foram quatro anos na grife até que, diz ela, passou pela “pior experiência da vida”.

Ela teria ouvido o dono da marca, Nelson Alvarenga, dizer que “o chicote vai estalar” se uma peça não ficasse a contento. “Tenho muito respeito por ele, mas lembro que na hora me veio à cabeça aquelas pinturas de escravos acorrentados. Nunca falei nada e só fui entender o que havia passado anos depois”, diz Paulino.​

Ela foi demitida logo depois e passou por outras marcas, mas diz nunca mais ter sido a mesma. Hoje, tem sua própria grife de moda praia, a Duca Duca, e quer dar aulas. Procurada, a Ellus não se manifestou.

Diretor da HDA, a primeira agência só de modelos negros do país, Helder Dias lembra vários casos de racismo. Num deles, seus modelos foram chamados para compor só o cenário de um desfile de brancos. Noutro episódio, diz que os modelos negros foram orientados a entrar pela porta de serviço nos desfiles da Casa de Criadores. Ele conta ter barrado a participação e que recebeu desculpas do evento.

“Nunca os negros foram incluídos. Ganham muito menos do que os brancos”, ele diz.

Os profissionais do mercado às vezes não estão preparados nem para maquiar negros. André Veloso, maquiador de celebridades negras, afirma que por muitos anos levou na mala bases compradas no exterior porque “aqui ninguém se interessava pela beleza negra”.

No calor do debate, as modelos que fizeram as denúncias recentes criaram o coletivo Pretos na Moda para lutar contra o que entendem como uma indústria calcada em dinheiro, poder, contatos e elitismo.

Camila Simões diz que a moda só vai mudar quando aqueles que a fazem hoje “tiverem certeza que não serão cancelados”. “Só vamos descansar quando nossos direitos forem garantidos e quando o verdadeiro Brasil for retratado em todos os âmbitos da moda.”​

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