Descrição de chapéu

'Infinito Vão' traça retrato melancólico de país em desconstrução

Exposição que repassa 90 anos da arquitetura brasileira está em cartaz em São Paulo, no Sesc 24 de Maio, até o final de junho

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São Paulo

Quem chega para visitar a exposição “Infinito Vão” é recebido por um vídeo em que a canção “Drão”, de Gilberto Gil, se sobrepõe a cenas de espaços arquitetônicos, ocupados por manifestações políticas ou artísticas.

Já dentro do espaço expositivo, o texto-parede dos curadores explica a escolha musical, que pode parecer estranha aos desavisados. O que uma bela composição sobre o fim de um casamento teria a ver com arquitetura?

“Na arquitetura, o vão é algo que se vence, um desafio a superar”, escrevem os curadores, Fernando Serapião e Guilherme Wisnik. “Mas ‘vão’, em português, também se utiliza para designar um projeto ou uma ação que termina em fracasso: algo que foi feito em vão.”

Centro Cultural São Paulo, um dos projetos enfocados na mostra "Infinito Vão", em cartaz no Sesc 24 de Maio
Centro Cultural São Paulo, um dos projetos enfocados na mostra "Infinito Vão", em cartaz no Sesc 24 de Maio - Leonardo Finotti/Divulgação

“O verdadeiro amor é vão/ Estende-se infinito/ imenso monolito/ nossa arquitetura”, dizem os versos de Gil que, na leitura dos curadores, abordam a arquitetura como “sutura daquilo que se perde, transformando-o no trânsito do plano pessoal para o coletivo, a perda em desafio a ser vencido no espaço, longe do chão, na linha do infinito”.

O conjunto de vídeo e texto lança o visitante num plano emocional talvez insuspeito para uma mostra de arquitetura. Mais que isso, num registro melancólico, que nos fala de um país em eterna potência. O vão é, também, o espaço em potência, o vazio a ser ocupado.

A mostra, fundamentada na Coleção Brasil da Casa da Arquitectura, a primeira estrangeira na instituição portuguesa, se organiza em recortes cronológicos, cobrindo 90 anos de produção.

Os projetos são apresentados em fotos e desenhos, acompanhados de textos breves e precisos, compondo uma bela linha do tempo introdutória das questões que nortearam a arquitetura de fato brasileira —aquela que começa com as primeiras aventuras modernistas.

Mesas com material impresso, maquetes e bancadas acessíveis (com imagens táteis, audiodescrição e vídeos em Libras), devidamente ladeadas por totens de sanitizante, completam a expografia.

Aqui e ali, citações constroem uma espécie de fortuna crítica. São apreciações da produção nacional, muitas de pensadores estrangeiros, nem sempre elogiosas —o que aprofunda a reflexão proposta, que se mantém saudavelmente distante do tom laudatório.

A escolha dos projetos é equilibrada; não faltam os marcos incontornáveis de cada momento histórico, mas a mostra tampouco se resume a eles, apresentando obras menos conhecidas, sobretudo dos anos 1970 para cá, como o edifício-sede da Chesf, em Salvador, de Francisco de Assis Reis, ou o conjunto habitacional Cafundá, de Sérgio Magalhães e equipe.

Mas o que de fato diferencia “Infinito Vão” de uma exibição qualquer é a maneira como a história é contada.

São seis núcleos temporais, intitulados com versos de músicas, que por sua vez conduzem vídeos a abrir cada seção. Esses filmetes são peças artísticas, que narram por justaposição de imagem e som, e não em texto documental, o momento abordado.

Ao aproximar música e arquitetura, os curadores criam uma identificação entre nossa arte mais popular e nossa expressão mais concreta de "soft power”, o Brasil “for export” do qual se orgulhar. É um procedimento crítico mas também didático, iluminando sentidos para o visitante.

A invenção do Brasil, ou a sagração do que é brasileiro, está em “Do Guarani ao Guaraná”. Sob a égide jocosa de Lamartine Babo, a seção tem um pé na descoberta do nacional por Lucio Costa e outro na trupe de 22 exibindo-se na casa de Warchavchik na rua Itápolis.

“A Base É Uma Só” traz o Brasil bossa-nova, em que os experimentos modernistas já adquiriram cor local e voz própria e se expandem em grau coletivo e social; é a época do residencial Pedregulho, do Conjunto Nacional e do Plano Piloto de Brasília.

Brasília e seus palácios, a passagem de utopia a pesadelo na ditadura e sua contestação tropicalista estão no cerne de “Contra os Chapadões Meu Nariz”.

A nova capital aponta também para o declínio do Rio de Janeiro e para a entrada em cena da arquitetura de São Paulo, cujo vigor industrial se traduz no credo da estrutura nua, o brutalismo paulista.

“Eu Vi um Brasil na TV” fala do desenvolvimentismo militar dos anos 1970 e do inchaço das capitais.

É um momento também de experimentação, em edifícios como o Sesc Pompeia e o Centro Cultural São Paulo, que rompem com a gramática estrita do modernismo.

A volta à democracia está em “Inteiro, e Não pela Metade”. O rock nacional e a arquitetura se põem contra a opressão. É a época dos mutirões e cooperativas.

“Sentimento na Sola do Pé” vem, na batida do rap, nos falar do espetáculo do crescimento e de sua quebra. É a seção que chega até os dias de hoje e constitui uma espécie de epílogo.

Nela, a maior parte das obras é apresentada não em painéis, mas em slides sucessivos. Como se o contemporâneo não merecesse —ainda?— o tempo contínuo, só a fragmentação da experiência e dos intentos da arquitetura.

Se, como dizem os curadores, no Brasil a modernização é um salto a ser dado sobre o atraso; se vão é o projeto fracassado; e, se o vão é infinito, parecemos condenados a dar eternamente esse mesmo salto no escuro.

Infinito Vão - 90 Anos de Arquitetura Brasileira

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