Quem chega para visitar a exposição “Infinito Vão” é recebido por um vídeo em que a canção “Drão”, de Gilberto Gil, se sobrepõe a cenas de espaços arquitetônicos, ocupados por manifestações políticas ou artísticas.
Já dentro do espaço expositivo, o texto-parede dos curadores explica a escolha musical, que pode parecer estranha aos desavisados. O que uma bela composição sobre o fim de um casamento teria a ver com arquitetura?
“Na arquitetura, o vão é algo que se vence, um desafio a superar”, escrevem os curadores, Fernando Serapião e Guilherme Wisnik. “Mas ‘vão’, em português, também se utiliza para designar um projeto ou uma ação que termina em fracasso: algo que foi feito em vão.”
“O verdadeiro amor é vão/ Estende-se infinito/ imenso monolito/ nossa arquitetura”, dizem os versos de Gil que, na leitura dos curadores, abordam a arquitetura como “sutura daquilo que se perde, transformando-o no trânsito do plano pessoal para o coletivo, a perda em desafio a ser vencido no espaço, longe do chão, na linha do infinito”.
O conjunto de vídeo e texto lança o visitante num plano emocional talvez insuspeito para uma mostra de arquitetura. Mais que isso, num registro melancólico, que nos fala de um país em eterna potência. O vão é, também, o espaço em potência, o vazio a ser ocupado.
A mostra, fundamentada na Coleção Brasil da Casa da Arquitectura, a primeira estrangeira na instituição portuguesa, se organiza em recortes cronológicos, cobrindo 90 anos de produção.
Os projetos são apresentados em fotos e desenhos, acompanhados de textos breves e precisos, compondo uma bela linha do tempo introdutória das questões que nortearam a arquitetura de fato brasileira —aquela que começa com as primeiras aventuras modernistas.
Mesas com material impresso, maquetes e bancadas acessíveis (com imagens táteis, audiodescrição e vídeos em Libras), devidamente ladeadas por totens de sanitizante, completam a expografia.
Aqui e ali, citações constroem uma espécie de fortuna crítica. São apreciações da produção nacional, muitas de pensadores estrangeiros, nem sempre elogiosas —o que aprofunda a reflexão proposta, que se mantém saudavelmente distante do tom laudatório.
A escolha dos projetos é equilibrada; não faltam os marcos incontornáveis de cada momento histórico, mas a mostra tampouco se resume a eles, apresentando obras menos conhecidas, sobretudo dos anos 1970 para cá, como o edifício-sede da Chesf, em Salvador, de Francisco de Assis Reis, ou o conjunto habitacional Cafundá, de Sérgio Magalhães e equipe.
Mas o que de fato diferencia “Infinito Vão” de uma exibição qualquer é a maneira como a história é contada.
São seis núcleos temporais, intitulados com versos de músicas, que por sua vez conduzem vídeos a abrir cada seção. Esses filmetes são peças artísticas, que narram por justaposição de imagem e som, e não em texto documental, o momento abordado.
Ao aproximar música e arquitetura, os curadores criam uma identificação entre nossa arte mais popular e nossa expressão mais concreta de "soft power”, o Brasil “for export” do qual se orgulhar. É um procedimento crítico mas também didático, iluminando sentidos para o visitante.
A invenção do Brasil, ou a sagração do que é brasileiro, está em “Do Guarani ao Guaraná”. Sob a égide jocosa de Lamartine Babo, a seção tem um pé na descoberta do nacional por Lucio Costa e outro na trupe de 22 exibindo-se na casa de Warchavchik na rua Itápolis.
“A Base É Uma Só” traz o Brasil bossa-nova, em que os experimentos modernistas já adquiriram cor local e voz própria e se expandem em grau coletivo e social; é a época do residencial Pedregulho, do Conjunto Nacional e do Plano Piloto de Brasília.
Brasília e seus palácios, a passagem de utopia a pesadelo na ditadura e sua contestação tropicalista estão no cerne de “Contra os Chapadões Meu Nariz”.
A nova capital aponta também para o declínio do Rio de Janeiro e para a entrada em cena da arquitetura de São Paulo, cujo vigor industrial se traduz no credo da estrutura nua, o brutalismo paulista.
“Eu Vi um Brasil na TV” fala do desenvolvimentismo militar dos anos 1970 e do inchaço das capitais.
É um momento também de experimentação, em edifícios como o Sesc Pompeia e o Centro Cultural São Paulo, que rompem com a gramática estrita do modernismo.
A volta à democracia está em “Inteiro, e Não pela Metade”. O rock nacional e a arquitetura se põem contra a opressão. É a época dos mutirões e cooperativas.
“Sentimento na Sola do Pé” vem, na batida do rap, nos falar do espetáculo do crescimento e de sua quebra. É a seção que chega até os dias de hoje e constitui uma espécie de epílogo.
Nela, a maior parte das obras é apresentada não em painéis, mas em slides sucessivos. Como se o contemporâneo não merecesse —ainda?— o tempo contínuo, só a fragmentação da experiência e dos intentos da arquitetura.
Se, como dizem os curadores, no Brasil a modernização é um salto a ser dado sobre o atraso; se vão é o projeto fracassado; e, se o vão é infinito, parecemos condenados a dar eternamente esse mesmo salto no escuro.
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