Descrição de chapéu Financial Times

Entenda como a derrubada de estátuas leva o design a ficar a serviço da morte

Crimes que estão sendo lembrados hoje, como escravidão, genocídio e homicídios em massa, são monumentais

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Edwin Heathcote
Financial Times

“Só uma parte muito pequena da arquitetura pertence à arte, o túmulo e o monumento. Todo o restante que cumpre uma função deve ser excluído.” Escrevendo em 1910, o arquiteto austríaco Adolf Loos sugeriu que, para que a arquitetura seja arte, ela deve dizer respeito à memória. “Nessa medida, poderíamos escrever uma história da arte da arquitetura como uma história do design da morte”, prosseguiu.

Das pirâmides em diante, poderíamos muito bem fazer esse argumento. Mas a pura abstração permitida pela função do memorial como arte pública tem sido tanto uma bênção quanto uma maldição. Na era em que foram erguidas todas aquelas estátuas de bronze de colonialistas, militares e escravistas, havia um certo consenso em relação ao que a arte deveria ser, e os monumentos públicos podiam exalar uma espécie de clareza cívica. Mas na era atual de pluralismo, as coisas são mais complexas, e controvérsias são quase inevitáveis.

Quando foi inaugurado o memorial de Mary Wollstonecraft criado por Maggi Hambling no norte de Londres, no mês passado, houve protestos contra o fato de uma figura nua minúscula ter sido associada à feminista pioneira.

Mas o fato é que quase todos os memoriais novos das últimas décadas têm suscitado controvérsia, desde o Memorial dos Veteranos do Vietnã criado por Maya Lin em Washington, visto como minimalista demais, até o memorial em homenagem a Dwight D. Eisenhower, por Frank Gehry, na mesma cidade, que seria demasiado parecido como um outdoor, passando pelo Memorial dos Judeus Massacrados da Europa, em Berlim, lúgubre demais, e o proposto Memorial Britânico do Holocausto, em Londres –grande demais, local errado.

Há questões de estética, representação e localização dos memoriais, discussões sobre escala, estilo e o que está sendo comemorado. O incidente em que a estátua do mercador de escravos Edward Colston foi jogado no mar em Bristol e as pichações que apareceram sobre estátuas de militares Confederados, monumentos ligados a Churchill e figuras colonialistas e racistas, de modo geral, durante protestos recentes promovidos em todo o mundo, sugerem que estamos começando a enxergar memoriais com mais clareza e a os interpretar mais atentamente.

Um livro novo, “In Memory Of: Designing Contemporary Memorials”, foi escrito recentemente por alguém que ganhou grande visibilidade num memorial, fato extremamente incomum para uma pessoa ainda viva. Spencer Bailey aparece numa estátua como uma criança carregada nos braços do homem que o resgatou de um desastre aéreo em Sioux City, em 1989, em que sua mãe morreu.

Pergunto a Bailey o que significou para ele a experiência de ter sido representado num memorial ainda em vida. “É um memorial que precisa de duas placas, e ainda assim falha”, ele respondeu.

Segundo Bailey, memoriais correm o risco de não ser interpretados ou então de ser interpretados incorretamente. “Aquela escultura conta uma história de heroísmo, uma história sobre um resgate. Ela não representa a coisa que deveria, a perda. Minha mãe, que eu perdi naquele dia”, ele afirma.

Esculpido por Dale Lamphere a partir de uma foto de Gary Anderson, a estátua faz parte de uma cultura memorial que ainda não chegou a um acordo com a modernidade, ou, poderíamos argumentar, com a história. Afinal, o que é uma pirâmide ou um mausoléu senão um monumento profundamente abstrato?

O livro de Bailey é uma pesquisa sobre memoriais em todo o mundo que eternizam eventos que vão do Holocausto e do 11 de Setembro à queima de bruxas na Noruega e à Grande Fome da Irlanda.

Folheando a sucessão de obras em muitos casos grandes, caras e expressivas, não podemos deixar de especular se não estamos vivendo alguma espécie de estranha era de ouro dos memoriais.

Parece que muitos países vêm erguendo monumentos cada vez mais grandiosos e arquitetonicamente ambiciosos. Alguns dos que mostramos aqui, como o Museu Judaico de Berlim, de Daniel Libeskind, ou o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana do Smithsonian, em Washington, de David Adjaye, são, na realidade, mais museus do que monumentos; a arquitetura da memória foi ampliada para se converter em uma instituição cultural.

Essa inflação de memoriais é um fenômeno significativo de nossos tempos, a criação de toda uma nova camada de infraestrutura cultural que não é questão tanto de coleções ou curadoria, mas de homenagens.

Isso está tendo algum efeito positivo? O argumento usado para justificar uma arquitetura da permanência em escala tão grande é a exortação para que não deixemos algo cair no esquecimento.

Mas ela vem de par em par com um tsunami de desinformação e fake news disseminados pela mídia digital fugaz e efêmera. A explosão de teorias conspiratórias, baboseira anticientífica, negação do Holocausto e esforços para reescrever histórias, tanto oficiais quanto pessoais, está levando a um colapso na narrativa, uma atomização da memória nacional e cultural, algo que mesmo os memoriais mais grandiosos e sérios não estão conseguindo combater.

Uma das questões mais complicadas aqui é a beleza. Podemos reconciliar a memória de algo destrutivo e terrível ou de um episódio sinistro da história humana com um memorial elegante, ou deveria a arte da memória nos provocar perturbação, incômodo e angústia?

Quase exatamente um século atrás foi inaugurado o Cenotáfio de Londres. Criado por Edwin Lutyens, arquiteto responsável por mansões grandiosas no campo e capitais coloniais, é uma torre esguia projetada como uma extrusão vertical de um suporte funerário —um pedestal para um féretro.

Em termos de design memorial contemporâneo, é uma coisa pequena. Mas cumpriu bem sua função, se tornando um objeto digno e polido exposto no meio da rua e do qual, portanto, as pessoas não podem se esquivar. Já o Memorial aos Desaparecidos do Somme, criado por Lutyens em Thiepval, na França, é totalmente diferente —um arco imenso construído em torno de uma série de vazios, uma expressão de ausência. Os dois memoriais são belos por fora, mas gritam por dentro.

O memorial de guerra foi completamente renovado e reimaginado radicalmente no início da década de 1980 por uma estudante de arquitetura de Yale, Maya Lin, de 21 anos, vencedora de um concurso para projetar um memorial aos mortos na Guerra do Vietnã.

“Esse memorial mudou tudo”, diz Bailey. O muro preto brilhante inserido na paisagem como uma cicatriz e com os nomes dos mortos inscritos em sua superfície introduziu a linguagem do minimalismo do mundo das artes num campo que geralmente havia sido um tanto maximalista.

A reação foi de que talvez fosse uma declaração demasiado radical, e o acréscimo do figurativo “Três Soldados”, do escultor Frederick Hart, foi visto como um gesto populista em direção às pessoas que ainda se sentiam afrontadas por uma obra de pura abstração criada por uma universitária sino-americana.

Lin ficou furiosa com o acréscimo da escultura, dizendo que "representava o estupro" de seu trabalho. Ela foi vindicada pelos visitantes e familiares que há décadas vêm acariciando os nomes inscritos no muro negro brilhante. As pessoas têm uma visão mais nuançada de memoriais do que se acredita.

Bailey aponta para o muro como o memorial mais influente da era moderna e também destaca a força do notável Memorial Nacional para a Paz e a Justiça, em Montgomery, no estado americano de Alabama, obra de 2018, projeto do MASS Design Group, que afirma ser o mais comovente que já viu.

Nessa obra enxergamos mais evidências de uma espécie de vitória do minimalismo. As lápides de aço enferrujado, representando condados onde ocorreram linchamentos e inscritas com os nomes dos mortos, são profundamente assombrosas, e outras versões ficam penduradas do teto de modo perturbador.

Elas se situam em algum ponto entre as caixas de Donald Judd e o Memorial dos Judeus Assassinados da Europa, de Peter Eisenmann, com um ressaibo férrico de “Strange Fruit”, de Billie Holiday. Mas mesmo aqui, neste memorial tão legível, se considerou que era necessário acrescentar figuras esculturais. Ainda não transcendemos a representação.

Os crimes que estão sendo lembrados hoje são monumentais –escravidão, genocídio, homicídios em massa através do terror. Mas poderíamos também indagar se os memoriais já se superaram. O proposto Museu Britânico do Holocausto, por exemplo, no Victoria Tower Gardens, em Westminster, é grande demais para o local que pretende ocupar —um gesto muito grande para um parque pequeno.

Com frequência os memoriais mais comoventes são os menores. As Stolpersteine, ou pedras de tropeço, nas calçadas de cidades do centro da Europa me obrigam a parar para refletir. Pequenas placas de latão sobre paralelepípedos embutidos nas calçadas, elas assinalam e identificam por nome as pessoas que viveram nesses endereços e morreram no Holocausto. Topamos com elas por acidente, mal as notamos, mas a conexão direta entre um nome, lugar e data no quarteirão onde você está é algo que nunca deixa de nos assombrar.

O memorial que para mim parece o mais poético de todos nem sequer está ali. O Monumento Contra o Fascismo, de Jochen Gerz, em Harburg, um subúrbio de Hamburgo, é um monólito revestido de chumbo sobre o qual as pessoas foram incentivados a inscrever nomes e mensagens. Ele foi sendo abaixado gradualmente, ao longo dos anos, até desaparecer sob a terra, deixando na superfície apenas um pequeno quadrado de metal. Como a própria memória, está quase inteiramente enterrado, mas está sempre ali.

Tradução de Clara Allain

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