Obras de toneladas de aço ocupam o pátio de concreto do MuBE em duelo de titãs

Peças de Amilcar de Castro, que faria cem anos, contrastam com a arquitetura brutalista de Paulo Mendes da Rocha em SP

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Belo Horizonte

As linhas horizontais da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, entre elas a marquise de 60 metros de extensão do Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia, o MuBE, dialogam com a verticalidade das esculturas de aço dobrado e cortado feitas por Amilcar de Castro. É como se a mostra que toma agora esse espaço no Jardim Europa, em São Paulo, fosse um grande encontro destinado a acontecer.

Obra de Amílcar de Castro dialoga com arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, que assina projeto do MuBE, em exposição - Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo/Divulgação

A obra do artista mineiro, que assinou o "Manifesto Neoconcreto", em 1959, junto a nomes como Lygia Clark, Ferreira Gullar e Franz Weissmann, apostando num racionalismo contraposto às irracionalidades de uma sociedade brasileira que se modernizou preservando desigualdades, é uma das inspirações dos projetos de Mendes da Rocha, um dos arquitetos brasileiros mais premiados de todos os tempos.

Na exposição do MuBE, a arquitetura dele e as obras de Castro, dividindo o mesmo espaço, criam um diálogo entre a abstração presente na arquitetura de um e nas esculturas e telas do outro, segundo Guilherme Wisnik, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e um dos organizadores da exposição. Nesse sentido, há ali um atrito entre arte, arquitetura e história.

“Quando Amilcar pega uma chapa de aço corten muito grande e faz duas dobras e um corte, é uma alteração muito simples do ponto de vista da linguagem, mas o resultado é muito potente. Você tem uma chapa que é plana, na hora que faz um corte e duas dobras, ela ganha volume, se estrutura e fica de pé, porque ganha uma forma sólida. Isso tudo está dentro da chave da abstração”, afirma Wisnik.

“Essa exposição traz uma coisa inédita que é a relação entre uma arquitetura poderosa e uma escultura e pintura poderosas, isso que a gente não viu ainda. Não só virão obras que as pessoas não estão acostumadas a ver, mas elas vão dialogar com o espaço.”

Planejada antes para dezembro do ano passado, ainda no ano do centenário do artista mineiro celebrado em junho, a exposição acabou adiada pela pandemia, que trouxe dificuldades de logística para o transporte das obras. A maioria delas vem do instituto que leva o nome do artista, em Nova Lima, nos arredores de Belo Horizonte, enquanto outras são empréstimos de colecionadores –no total, são cerca de 120 peças.

Entre elas, está a maior de todas as esculturas de Castro, com 18 metros de altura, peso de 20 toneladas e que fica numa rotatória na cidade mineira de Uberaba. A obra, feita nos anos 1990 para a Universidade de Uberaba, deve chegar ao museu paulistano para a segunda etapa da exposição, prevista para março, e ficará um ano em São Paulo.

Uma estrutura especial de aço projetada pelo engenheiro Ary Perez foi montada para proteger a peça durante o transporte. Segundo a equipe do MuBE, a peça já está a caminho da capital paulista, mas ainda não há data marcada para a exibição dela.

Numa das galerias do museu, estão trabalhos em preto e branco, pensando no essencial da obra do artista, marcada pela expressão do construtivismo com rigor absoluto e extremo, segundo Wisnik –o conjunto então dialoga com o cinza da arquitetura. A galeria subterrânea terá pinturas de grande porte, pouco vistas pelo público –a maior tela tem 12 metros de largura.

“Essa exposição no MuBE tem como diretriz trazer à tona a essência do pensamento do Amilcar, sem concessões. E o resultado que alcançamos é surpreendente”, afirma Rodrigo de Castro, diretor do Instituto Amilcar de Castro, filho do artista e também à frente da exposição, junto a Wisnik e Galciani Neves, curadora-chefe do museu.

Rodrigo também organizou outra exposição sobre a obra do pai, na galeria do Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte, no ano passado –"Matéria e Luz". Foi na capital mineira que Castro conheceu e estudou com o modernista Alberto da Veiga Guignard, enquanto terminava a faculdade de direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Um de seus trabalhos pode ser visto junto à Assembleia Legislativa do estado e há obras dele no Instituto Inhotim, em Brumadinho.

Aberta na metade de novembro, ainda no ano do centenário do artista, a exposição na capital mineira trouxe obras de Castro em diversos suportes –desenhos, projetos de esculturas, esculturas de aço e madeira e pinturas–, além de uma tela inédita, de oito metros de largura, feita no movimento de uma pincelada só, com vassoura, técnica muito usada por Castro.

“Ele não é um artista que olha o mundo para pintar. Pinta o que sente, o que pensa naquele instante. Os desenhos têm a mesma linguagem de gestos e formas”, diz o filho.

Trabalhando como designer em veículos da imprensa no Rio de Janeiro, entre eles, o Jornal do Brasil, Castro ficou amigo do poeta Ferreira Gullar, que escreveu o "Manifesto Neoconcreto". Numa coluna neste jornal, há dez anos, Gullar disse que o manifesto não fazia promessa nenhuma e que nasceu da constatação do que estava sendo realizado nos trabalhos de artistas como Hélio Oiticica, Lygia Pape, Aluisio Carvão, Lygia Clark e o próprio Castro.

O filho do artista afirma que todos eles queriam uma arte brasileira mais livre de conceitos e valores europeus, mas que não eram um grupo. Cada um tinha sua linguagem própria.

“Essas obras foram feitas nos anos 1950, 1960, 1980, mas são completamente atuais. A força que isso tem, elas atravessam o tempo, mas permanecem com vigor”, diz ele sobre a obra do pai. “O aço ele dizia que é o material de Minas, que as pessoas tinham uma identificação com ele, o minério de ferro. O aço vai criando uma ferrugem, ganhando uma cor da passagem do tempo, que não é pintura. Ele gostava dessa coisa do tempo passando sobre a obra e deixando a marca através da cor da ferrugem.”

A exposição tem ainda uma seleção de trabalhos de artistas brasileiros que dialogam com a obra de Amilcar de Castro, como Tomie Ohtake, Carmela Gross, Lia Chaia, Moisés Patrício e Max Willá Morais.

Wisnik, que diz considerar Castro o maior escultor brasileiro, atrás só de Aleijadinho, afirma que lembrar a obra dele é recuperar o concretismo e o neoconcretismo, movimentos artísticos que tentaram guiar a arte brasileira para um caminho de racionalidade.

“A gente vive hoje, infelizmente, uma onda irracionalista, não iluminista, mais para a barbárie do que para a civilização”, diz Wisnik. “A arte do Amilcar explicita esses valores iluministas, cartesianos, que estão muito em descrédito na turbulência ideológica que vive o Brasil hoje.”

Amilcar de Castro

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