Contardo Calligaris escreveu sobre a tentativa da ONU de fixar a democracia em Timor

Psicanalista foi enviado pela Folha à ex-colônia portuguesa em 2000

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São Paulo

Em 2000, Contardo Calligaris foi enviado pela Folha ao Timor-Leste e lá encontrou inspiração para novos escritos, mas não sem antes reportar os imbróglios envolvendo a tentativa da ONU de estabelecer uma democracia na ex-colônia portuguesa, controlada por anos pelo governo indonésio.

Leia o texto escrito por Contardo Calligaris.

Timor Leste é o laboratório de um grandioso projeto da razão -certamente o mais ambicioso na história da ONU. Trata-se de fazer com que um país democrático surja numa terra que foi colônia, território ocupado e depois sistematicamente destruída.

Espera-se demonstrar que é possível criar, segundo a razão, uma verdadeira democracia e que o empreendimento pode ser obra do esforço conjunto da comunidade internacional.

Muitos, sobretudo técnicos a serviço da ONU, se queixam da lentidão de sua máquina administrativa. Observam que as coisas seriam mais fáceis se cada função fosse atribuída à competência de funcionários de um país só.

Exemplo do potencial de confusão: os 1.300 homens da polícia civil da ONU (Civipol) são de 42 países.
A dificuldade não é só linguística. É preciso conciliar estilos diferentes de administração, de comando e de ação. A necessidade dessa pluralidade incômoda é questionada. Mas ela é um primeiro sonho iluminista: o da cooperação racional possível entre homens e mulheres de nações, etnias e culturas diferentes.

O segundo sonho é a pretensão de plasmar a realidade política e social segundo as exigências da razão. O caminho escolhido, neste caso, naturalmente, é a educação. É urgente formar juízes e advogados, antes mesmo que seja decidido qual será o código penal e civil que o país adotará. É preciso produzir elites técnicas, administrativas e pedagógicas. Foram fundadas às pressas uma escola de administração e uma academia de polícia.

A academia acaba de formar a sua terceira turma. Está localizada no antigo quartel-general da polícia indonésia, em Dili, onde ainda existe, intacta, a cela onde o líder da independência Xanana Gusmão passou momentos difíceis. Vale como lembrança: afinal, lembra o major Lima Castro, um dos 13 PMs brasileiros da Civipol, "os jovens que entram na academia só conheceram os abusos repressivos da polícia de ocupação", nunca lidaram com uma polícia democrática.

A dificuldade do ensino consiste em passar ao mesmo tempo confiança na autoridade policial e respeito em relação aos direitos dos cidadãos.

Mas o maior empreendimento é a difusão entre a população de todo um espírito democrático antes das eleições gerais previstas para o fim de 2001 ou o começo de 2002. A ONU, na hora de inventar uma democracia, decidiu instruir os eleitores para combater a ignorância política dos votantes. A população timorense (mais de 50% analfabeta) terá aulas de educação cívica.

A Divisão de Assuntos Eleitorais e Constitucionais da Untaet (sigla, em inglês, para Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste) redigiu três apostilas: "Glossário de Educação Cívica", "Informações sobre o Significado da Democracia" e "Informações sobre a Democracia Representativa". Com esses textos foi treinada uma turma de educadores que têm a tarefa de espalhar a consciência democrática pelo território timorense.

Curiosamente, nas três apostilas não há nenhuma referência ao "suco"-palavra tetum (língua local) que designa as assembléias populares de bairro e de aldeias. Elas são o sistema espontâneo e democrático de autogoverno da cultura timorense. Prova de que o iluminismo às vezes é deslumbrado pelo brilho excessivo da razão (abstrata).

Timor tornou-se também alvo de uma generosidade internacional inédita.

Segundo uma lista não atualizada, atuam na região 121 organizações não-governamentais com registro timorense e 73 com registro internacional: quase 200 ONGs trabalhando com e para uma população de cerca de 753 mil pessoas. É fácil ironizar a situação, dizer que as centenas de computadores usados pelas ONGs seriam mais bem empregadas nas futuras escolas timorenses. Ou que suas centenas de funcionários hiperqualificados, em vez de consagrar milhares de horas à redação de relatórios para captação de recursos, talvez pudessem ser mais bem aproveitadas.

A irmã Valéria Resende, brasileira, da Rede de Educadores Populares do Nordeste, esteve em Timor durante um mês a convite de Loa Ramotuk, da Caminhando Juntos -uma ONG timorense cujo propósito é monitorar o trabalho das outras ONGs. Ela notou um descompasso entre a imensa generosidade e seus poucos efeitos concretos. Por exemplo, numa situação de penúria de produtos de limpeza, a irmã estranhou que ninguém ensinasse à população uma técnica simples de fazer sabão com soda cáustica.

Ela mesma passou a divulgar essa sabedoria prática. Em suma, a generosidade pode ser tão abstrata quanto o sonho iluminista.

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