Descrição de chapéu

Lil Nas X rebola para o Diabo e celebra LGBTs em clipe de safadezas

Em 'Montero', não vemos uma apologia de Satã, mas uma ode ao erotismo e à liberdade

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“Em vida, nós escondemos as partes de nós mesmos que não queremos que o mundo veja. Nós as escondemos, nós dizemos não, nós as banimos. Mas aqui, não. Bem-vindo a Montero.” É com essas palavras que o rapper Lil Nas X introduz o clipe de “Montero” e, também, sua versão gay e fabulosa do paraíso e do inferno.

Repleto de referências, o vídeo é um passeio pelas histórias bíblicas e as antiguidades grega e romana. Tudo embebido em muita safadeza, o que vem gerando uma espécie de choque coletivo, como o provocado por “WAP”, hit de Cardi B sobre lubrificação vaginal que virou alvo de grupos tradicionalistas.

Não ajudou o fato de Lil Nas X ter lançado um tênis com referências satânicas e sangue humano misturado com tinta na sola, limitado a 666 pares. A ação, viral e cômica, gerou até mesmo um processo da Nike.

Nos primeiros segundos de “Montero”, vemos o cantor num Jardim do Éden colorido, tocando seu violão cor-de-rosa, quando uma serpente —que leva seu próprio rosto— o derruba, rouba um selinho, dá uma lambida nele e o condena ao pecado.

Já foi o suficiente para uma horda de conservadores inundar as redes sociais com ataques a Lil Nas X, que é gay, e ao novo trabalho, que soma mais de 54 milhões de visualizações em apenas cinco dias.

Longe de ser a parte mais polêmica, este primeiro ato se encerra com um recado claro sobre as intenções do rapper com o clipe, que ele mesmo codirigiu. “Após a divisão do homem em duas partes, cada uma desejou sua outra metade”, diz a inscrição numa árvore, em grego.

Retirado do “Simpósio” do filósofo Platão, o trecho faz referência à ideia de que os seres humanos eram originalmente formados por dois corpos —dois masculinos, dois femininos ou dois opostos. Zeus, num ataque de fúria, os teria separado e condenado a vagar pela Terra em busca daquele que o completa. É uma alegoria sobre amor e atração que, Lil Nas X deixa bem claro, pode ser por qualquer gênero.

Na sequência, o rapper aparece acorrentado, diante de versões dele próprio à la Maria Antonieta, que o julgam de forma afetada e desdenhosa. Na arena grega onde ele está, os espectadores são feitos de pedra, como que para simbolizar sua falta de pensamento crítico, e um deles arremessa um objeto na cabeça de Lil Nas X. É quase impossível perceber sem pausar o vídeo, mas o que o acerta é um plug anal.

Aí começa a parte mais divertida e sexy para alguns, e a mais problemática e de mau gosto para outros. O rapper flutua em direção ao céu, onde a imagem de um anjo com as asas abertas o chama. Seria ele Ganimedes, figura mitológica que de tão bela foi convidada para o Olimpo? É bastante provável, já que a divindade é tida como um símbolo da homossexualidade.

Mas Lil Nas X desiste de o seguir quando uma longuíssima e fálica barra de pole dance atravessa o céu e o puxa para o sentido oposto. Com as mãos firmes no cano, o rapper escorrega, só de cueca, roçando a virilha até pousar diante de um castelo macabro.

Num trono, o Diabo em pessoa, vestido com acessórios fetichistas de couro, o observa. Lil Nas X então senta em seu colo e faz uma lap dance. Rebola efusivamente, fica de quatro e planta uma bananeira que deixa sua bunda colada no rosto da criatura. Em latim, as palavras “eles condenam o que não entendem” enfeitam o chão.

Em sua dança satânica, as noções de pecado e de promiscuidade são naturalizadas, como se neste mundo onírico criado pelo cantor o que realmente importa é estar do lado oposto daqueles que julgam e destilam preconceito —mesmo que isso signifique estar alienado do divino. E então Lil Nas X quebra o pescoço do Diabo e se torna a mais maligna das entidades. Os excluídos, enfim, triunfam.

O rapper Lil Nas X aparece com os cabelos vermelhos, num fundo também vermelho, segurando um tênis preto, como símbolo da nike, com solo vermelha e um pentagrama no centro
Lil Nas X anuncia lançamento de linha de tênis com gotas de sangue humano na sola - Divulgação/MSCHF

Há tempos, Lil Nas X vem ressignificando e reforçando elementos do universo gay em suas canções e clipes. Flertar com o capeta era só uma questão de tempo. Em seu maior hit, “Old Town Road”, o rapper injetou doses de glamour e purpurina no universo dominado por tipos machos dos caubóis, enquanto os elfos de seu Papai Noel futurista, em “Holiday”, eram bem atrevidos.

No glam rap de “Montero”, Lil Nas X apresenta não uma narrativa apologética de Satã, como os mais loucos e quadrados dos críticos vêm alegando, mas uma ode ao erotismo e à emancipação de séculos e mais séculos de discursos religiosos que podam as liberdades individuais.

Ele subverte a iconografia greco-romana e transforma símbolos de fé em temas celebrativos da comunidade LGBT, pondo a homossexualidade no centro de narrativas históricas das quais ela foi apagada.

A letra de “Montero”, batizada com o nome de nascença do artista, também reflete isso. “Eu não estou perturbado, só estou aqui para pecar. Se Eva não está no seu jardim, você sabe que pode me ligar quando quiser”, canta ele.

Completam seu pacote de provocação a própria capa do single, uma releitura de “A Criação do Homem”, de Michelangelo, em que Lil Nas X é criador e criatura, e o subtítulo da faixa, “Call Me by Your Name”, uma referência ao filme “Me Chame pelo Seu Nome”, clássico instantâneo do cinema queer.

Os conservadores que agora apontam o dedo para Lil Nas X talvez não entendam que são eles mesmos, em acessos de fúria como o atual, o motor por trás do novo clipe. Não tivessem apontado tantos dedos por tantos anos, o cantor não estaria esnobando seu estilo de vida acanhado e sem graça em “Montero”.

Canção e clipe são, como o filme do título, novos clássicos, mas dessa vez da música queer. São um criativo e corajoso grito de resistência, que faz um alerta –sempre estivemos aqui, mas agora mais empoderados e ousados do que nunca.

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