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Simone de Beauvoir leva suas teorias para a ficção em 'As Inseparáveis'

Romance inspirado em relação com melhor amiga singulariza opressão feminina que escritora descreveu em 'O Segundo Sexo'

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Thana de Souza

As Inseparáveis

  • Preço R$ 39,90 (399 págs.)
  • Autor Simone de Beauvoir
  • Editora Record
  • Tradução Ivone Benedetti

O romance "As Inseparáveis", de Simone de Beauvoir, escrito em 1954, acaba de chegar ao público brasileiro pela editora Record, pouco depois de ser publicado na França. A edição traz, além do texto, várias fotos da autora e de sua amiga Zaza.

O livro conta a história de duas amigas, "as inseparáveis", como eram chamadas na escola católica em que se conheceram, aos nove anos, na Paris do início do século 20. Ou melhor, é a história de Andrée, contada por Sylvie, personagem baseada na própria Beauvoir. Se conhecemos um pouco da vida de Sylvie, é sempre em relação à amiga, que ocupa o papel central da narrativa.

Beauvoir não quis publicar "As Inseparáveis" em vida, por considerar que o livro não fazia jus a Zaza, inspiração por trás da personagem Andrée. A escrita do romance se tornou ao mesmo tempo necessária e impossível diante da morte brusca da amiga, aos 21 anos. Foi um livro difícil para Beauvoir escrever.

Em grau menor, eu também tive dificuldades para escrever esta resenha. Como pesquisadora da filósofa, associei os personagens às pessoas reais que os inspiraram –Zaza, Beauvoir, e também o filósofo Merleau-Ponty.

Tentando me pôr no lugar de leitores que abrirão um romance, sem o associar a essas pessoas reais, começo por dizer que a autora não faz rodeios com a linguagem. O amor entre duas amigas —não esperem cenas de sexo; o amor é intenso e platônico—, a relação entre mães e filhas, e a ligação com Deus aparecem como centrais e são abordados de maneira simples. O trágico não precisa ser aumentado com palavras eruditas e frases confusas.

Nada muda nos dois capítulos, no sentido de que os temas são os mesmos. São as personagens que se modificam. No primeiro, Sylvie admira a liberdade de Andrée, que, criança, não se intimidava diante das professoras católicas. No segundo, Sylvie passa a ver como prisão o que antes achava ser liberdade.

Enquanto Sylvie se liberta das amarras sociais (ela chega a dizer que às vezes agradecia à guerra por ter criado problemas financeiros à sua família, dando a ela a necessidade de ter uma profissão), Andrée se aprofunda no dilema entre se querer livre e, ao mesmo tempo, obedecer à sua mãe e a Deus. Se as amigas continuam inseparáveis, percorrem caminhos opostos.

Andrée é uma menina corajosa, minada por uma sociedade tradicional e religiosa, que a força a não prosseguir seus estudos, porque seu destino é o casamento. Ela se torna uma adolescente que se culpa, e se castiga, por desejar o que não é destinado a ela, que tenta viver de forma casta o que é proibido (uma relação amorosa com Pascal), sem compreender, mas desculpando, as exigências de sua mãe.

Beauvoir descreve muito bem, no segundo volume de "O Segundo Sexo", publicado cinco anos antes da escrita de "As Inseparáveis", como uma menina é educada para se contentar com um destino que a impede de se pôr como sujeito.

E isso não ocorre apenas porque é uma filósofa preocupada com questões concretas, mas também porque viveu, em partes, esse destino, e porque sua melhor amiga morreu de encefalite, e por conta dos dilaceramentos causados pela sociedade às mulheres.

Enquanto o livro teórico discute "a situação das mulheres", o romance descreve momentos da vida de Andrée, a jovem que leva ao extremo o conflito entre sua subjetividade e uma sociedade que a tenta aniquilar. Mas as duas esferas se comunicam, e a forma literária singulariza o que também pode ser observado nas estruturas reais e gerais.

Beauvoir têm êxito em homenagear sua melhor amiga, que amou e que viu, de forma repentina, morrer. A autora escreve um belo, curto, e íntimo romance, que até pode parecer arcaico para as novas gerações, por causa da ingenuidade das adolescentes francesas do início do século 20. Mas receio que, infelizmente, para a maioria das mulheres, ainda não seja. E mesmo que o temor a Deus e à família não sejam pautas tão atuais, a amizade que persiste diante dos problemas da vida continua a ser. Ou, ao menos, deveria continuar a ser.

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