Entenda como um acidente brutal fez de Mario Cravo Neto o fotógrafo da negritude

Mostra com 300 imagens no IMS Paulista lembra que batida de carro moldou olhar do artista para a vida em Salvador

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Fotografia de Mario Cravo Neto, da série 'The Eternal Now', agora em mostra no IMS Paulista

Fotografia de Mario Cravo Neto, da série 'The Eternal Now', agora em mostra no IMS Paulista Acervo Instituto Mario Cravo Neto

São Paulo

Mario Cravo Neto gostava de carros. Muito. Quando morou com sua mulher em Nova York, no final da década de 1960, o fotógrafo dedicou algum tempo a registrar automóveis com certo fetiche –enfileirados em estacionamentos, parados em garagens de casas, molhados pela chuva, compondo a paisagem das ruas como se tivessem vida própria. Numa das imagens, o preto da lataria é liso e lustroso como a pele humana.

Perto de completar 30 anos, já de volta à sua Salvador natal, a paixão pelo automobilismo viria a determinar de maneira definitiva a vida e a carreira do artista. Numa noite daquele ano, ao sair do aniversário do pintor Carybé com uma mistura de uísque e remédios na corrente sanguínea, Cravo Neto bateu sua Brasília num poste de concreto ao fazer uma curva na orla, a velozes 120 quilômetros por hora. A parte da frente do carro ficou destroçada e disforme, sobretudo o lado do motorista.

Em tom vermelho-sangue, a imagem do carro destruído ancora uma série de fotografias e pinturas —inclusive uma a partir do raio-x de seu fêmur quebrado— expostas no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Organizada por Luiz Camillo Osorio, a exposição “Espíritos Sem Nome” faz uma retrospectiva, em cerca de 300 imagens, das principais séries produzidas pelo artista entre as décadas de 1960 e 1990, período em que ajudou a construir, com sua câmera fotográfica, a iconografia de Salvador e seu sincretismo religioso.

“O acidente foi o que fixou a fotografia na vida dele. Até ali, ele ainda estava tentando se entender como artista plástico”, diz seu filho Christian Cravo, também um fotógrafo renomado. No início da carreira, Mario Cravo Neto se dedicou a esculturas feitas com peças de acrílico, plantas e terra —devido à influência do pai, o escultor Mario Cravo Júnior— e a aquarelas, algumas nas quais pintava o mar de Salvador, conta o filho.

O acidente imobilizou Cravo Neto por quase um ano e deixou como sequela uma perna mais curta do que a outra. A locomoção comprometida determinou sua maneira de fotografar, afirma seu filho. Saem de cena as imagens em preto e branco que fez durante as andanças por Nova York —registrando uma cidade em eterno movimento—, e entram fotos mais estáticas e dirigidas, mesmo na famosa série em cores “Laroyé”, presente na mostra, em que Cravo Neto registrou a cultura popular das ruas da capital baiana nos anos 1990.

“Passou a ser um trabalho de composição plástica. Não são fotos de movimento decisivo, de composições que acontecem numa fração de segundo e somem, não é escola Cartier-Bresson”, afirma Christian Cravo, acrescentando que seu pai, na maioria das vezes, conversava mesmo que brevemente com os personagens que encontrava em Salvador antes de fotografar. Chama a atenção o cuidado de Cravo Neto ao retratar os corpos das pessoas nesta série, a exemplo de uma imagem de um torso masculino onde se vê cada detalhe da pele.

Fotografia de Mario Cravo Neto, da série 'The Eternal Now', agora em mostra no IMS Paulista
Fotografia de Mario Cravo Neto, da série 'The Eternal Now', agora em mostra no IMS Paulista - Acervo Instituto Mario Cravo Neto

O esmero nas fotografias de corpo atinge seu ápice em “Eternal Now”, ou o eterno agora, um conjunto de fotos em preto e branco de grandes dimensões realizadas em seu estúdio, com fundo infinito. Nesta série, os modelos posavam em frente a uma lona de caminhão usando seus corpos como suporte para elementos que remetem ao universo simbólico de Salvador e do candomblé —pedras, animais, tecidos, emaranhados de fios.

Essas imagens “têm uma dimensão escultórica muito forte, pela maneira como o corpo tem gravidade, presença e materialidade”, afirma o curador, Luiz Camillo Osorio.

Osorio destaca ainda o papel de Cravo Neto em firmar a fotografia no contexto artístico brasileiro na virada da década de 1970 para a de 1980, dando à linguagem uma envergadura poética, ao lado do fotógrafo Miguel Rio Branco, de quem era muito amigo. A sala conjunta dos dois artistas na 17ª Bienal de São Paulo, em 1983, foi um passaporte para a fotografia no mercado das artes visuais, afirma o curador, lembrando que o baiano já havia sido premiado na Bienal de 1971 por seu trabalho como escultor.

Fotografia de Mario Cravo Neto, da série 'The Eternal Now', agora em mostra no IMS Paulista
Fotografia de Mario Cravo Neto, da série 'The Eternal Now', agora em mostra no IMS Paulista - Acervo Instituto Mario Cravo Neto

A exposição traz ainda retratos num terreiro de candomblé, religião adotada pelo artista no final dos anos 1990, em parte devido à convivência com o etnógrafo e fotógrafo Pierre Verger, francês radicado em Salvador que dedicou a vida a registrar a influência africana na Bahia. As imagens desse conjunto captam o borrão deixado pela dança das mães de santo, por um lado, e por outro se valem de uma cerimônia de Iemanjá para pôr em foco colares, miçangas, anéis e rendas de vestidos.

“Ele jamais concordaria que é um trabalho sobre o candomblé”, ressalva o filho, “mas sim sobre a espiritualidade do homem”. Questionado sobre se as fotos de Cravo Neto podem ganhar novas leituras à luz do movimento Black Lives Matter, Christian Cravo afirma que seu pai não era um fotógrafo necessariamente voltado para a interpretação da Bahia africana. “Isso fazia parte da vida dele porque ele era baiano e amava a cultura da Bahia, e isso vai se refletir em grande parte da obra dele.”

Quem foi Mario Cravo Neto

  • Filho do escultor Mario Cravo Júnior, Cravo Neto conviveu com ícones da intelectualidade que frequentavam sua casa, como Carybé, Jorge Amado, Lina Bo Bardi, Marcel Camus e Pierre Verger
  • Ele foi formado como artista pela influência de seu pai, mas também teve aulas com os fotógrafos modernos Hans Mann e Fulvio Roitier, na Bahia, antes de se mudar para Nova York em 1969, onde estudou na Art Studens League, tendo contato com o minimalismo em voga na época
  • Além da fotografia e da escultura, o artista trabalhou com vídeos, instalações e pinturas —há algumas aquarelas suas na exposição, bem como o vídeo GW-43, feito em 1991 a partir da captura de imagens televisivas da Guerra do Iraque
  • Embora não tivesse nenhuma doença crônica, Cravo Neto tinha a saúde frágil, diz o filho, Christian; além disso, era o mais tímido e o mais introspectivo entre os irmãos
  • Ele morreu em 2009, aos 62 anos, em decorrência de um melanoma, o tipo mais agressivo de câncer de pele; sua última mostra em vida ocorreu no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, naquele mesmo ano

Mario Cravo Neto: Espíritos sem Nome

  • Quando Abertura sábado (1º). Até 26/9. Agendamento p/ sympla.com.br/imspaulista
  • Onde IMS Paulista - av. Paulista, 2424. Ter. a dom., de 12h às 18h
  • Preço Grátis
  • Live com Christian Cravo, Luiz Camillo Osorio, Mariana Newlands e Sergio Burgi 10/5, às 18h, transmissão ao vivo em youtube.com/imoreirasalles e facebook.com/InstitutoMoreiraSalles
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