Entenda como a TV foi da ironia de 'The Office' ao sincerão 'Ted Lasso'

Distanciamento do passado foi substituído por humor mais sincero e direto nas comédias de hoje

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James Poniewozik
The New York Times

David Brent encontraria emprego, hoje?

Ricky Gervais, que dançou desajeitadamente rumo às telas de TV interpretando Brent, na inovadora série “The Office”, em 2001, foi entrevistado recentemente sobre o programa que ele criou, com Stephen Merchant. “Hoje a série seria cancelada”, ele disse, falando no sentido cultural e não comercial. “Estou só esperando que as pessoas decidam escolher um motivo para cancelar.”

Gervais mais tarde explicou no Twitter que sua declaração era “claramente uma brincadeira”. Acredito que fosse brincadeira. O “claramente” é discutível, dado o longo histórico de Gervais como postulante de um humor real demais para o gosto da patrulha do pensamento. De qualquer forma, foi uma coisa estranha a dizer no momento em que a elogiada série comemorava seus 20 anos de lançamento.

Mas, se Gervais não exatamente tinha um argumento, ele estava pelo menos perto disso. “The Office” bem poderia ser recebida de maneira diferente se fosse lançada hoje (e o Ricky Gervais de hoje talvez não criasse uma série como aquela). Mas as razões vão além do “cancelamento” e se relacionam a mudanças no estilo narrativo da televisão –acontecidas pelo menos em parte porque “The Office” e séries parecidas surgiram, para começar.

Nas comédias, assim como nos dramas, mais ambiciosos da televisão, a trajetória dos últimos 20 anos não vai de séries ousadas e de risco para narrativas inofensivas e sem espinha dorsal. Mas ainda assim o que aconteceu foi, em termos amplos, uma transição da ironia para a sinceridade.

Por ironia, aqui, não quero dizer cinismo ou sarcasmo, apesar da confusão popular que costuma existir entre os termos. Falo de um modo de narrativa irônico, no qual aquilo que uma série “pensa” é diferente daquilo que seu protagonista faz. Duas décadas atrás, as histórias mais distintivas que havia na televisão eram definidas por um tom de distanciamento acerbo. Hoje, existe uma probabilidade maior de que sejam sinceras e diretas.

Podemos perceber a mudança nas carreiras de alguns dos maiores astros dessa mídia, e em sua energia criativa mais ampla. A mudança poderia ser atribuída ao cansaço quanto a comédias com personagens repulsivos e histórias de anti-heróis, à exaustão quanto à transformação da ironia em arma cultural, a transformações no universo de telespectadores ou a mudanças nos criadores de programas de TV —tudo isso e mais.

Mas o que extraímos disso é que, se David Brent pareceria deslocado em 2021, não seria por causa da repressão imposta por algum departamento cultural de recursos humanos; seria por causa da moda televisiva atual de dizer coisas como se acreditássemos mesmo nelas —para o bem e para o mal.

Algumas semanas atrás, eu e meus colegas críticos do The New York Times criamos uma lista com as 21 melhores séries americanas de humor dos últimos 21 anos. A ordem é cronológica —odeio rankings que tentam transformar arte em matemática—, e isso tem o benefício adicional de apresentar um instantâneo sobre a história televisiva recente.

A lista começa com séries como “Curb Your Enthusiasm”, “Arrested Development” e a versão americana de “The Office”, programas cujos protagonistas são comicamente irritantes ou sujeitos completamente sem noção. E termina com a calorosa comédia dramática “Better Things” e com “PEN15”, uma série sobre jovens que amadurecem juntos; os personagens dessas séries podem ser imperfeitos ou canhestros, mas mesmo assim o objetivo é que o espectador se identifique com eles.

Se o capeta padroeiro da comédia no começo do século era o David Brent de Gervais – ególatra, desesperado pelo afeto dos outros, casualmente vulgar e insultuoso para com seus subordinados—, o rosto essencial da comédia atual talvez seja o de Ted Lasso, o americano transplantado para a Inglaterra como treinador de futebol, que cita Anne Lamott, encoraja seus jogadores a se manterem psicologicamente saudáveis e faz bolos para sua chefe. Ele é tão docinho que a tentação é a de embalar e vender o homem como bombom.

Em seu cerne, o “The Office” original e “Ted Lasso”, que recebeu 20 indicações ao Emmy neste ano giram em torno da importância da gentileza e da empatia. A série de Gervais talvez seja ainda mais didática moralmente; ela tem um lado sentimental, quase piegas, que se tornou ainda mais pronunciado nas comédias posteriores do criador, como “After Life”. Mas esse argumento é defendido de forma irônica e negativa. A expectativa é de que o espectador infira seu julgamento sobre Brent com base nas reações dos outros personagens e em suas próprias reações pessoais.

O que estava acontecendo, na virada do milênio? “The Office” e companhia surgiram logo depois da era de alta ironia simbolizada por “Seinfeld” e David Letterman, um momento em que esse recurso literário era uma preocupação cultural importante a ponto de inspirar capas de revistas, livros e obituários prematuros. E ele também se enquadrava bem a dramas como “Família Soprano”, que pediam que você gostasse dos protagonistas sem realmente gostar deles.

Já existiam anti-heróis na arte muito antes que Tony Soprano desse fim à sua primeira vítima. Dostoiévski os criou; Northrop Frye escreveu sobre eles. E séries anteriores de TV tentaram a sorte com protagonistas complicados, como o Archie Bunker de “All in the Family”. Mas era mais difícil adotar esses personagens na televisão –que exige audiências muito mais amplas que a ficção literária, ou pelo menos exigia, antes que surgissem empresas como a HBO.

O traço comum entre os dramas estrelados por anti-heróis e as comédias com personagens repulsivos é a suposição de que as audiências são capazes de distinguir —e distinguirão— entre a mentalidade do protagonista e a visão do autor.

O pedido é que o espectador aceite a dissonância, dentro da história e dentro de si mesmo. Tony Soprano podia ser visto como um animal, mas o espectador ao mesmo tempo reconheceria a besta interior que carrega, e que ecoa o comportamento do mafioso; Larry David podia ser reconhecido como um sujeito escroto, e ao mesmo tempo o espectador teria a capacidade de admitir que o admirava por isso.

As audiências nem sempre observam essa nuança, o que conduziu àquilo que a crítica Emily Nussbaum define como “maus fãs”, os espectadores agressivos de “Família Soprano” e “Breaking Bad” que só queriam ver Tony Soprano rachando cabeças e Walter White usando a ciência para se tornar o maior traficante de metanfetaminas, e que se irritavam caso outros personagens, fãs, ou mesmo os criadores das séries dessem a entender que aqueles sujeitos eram qualquer coisa menos que maravilhosos.

Seria possível afirmar que esse abandono do modo irônico e do culto ao anti-herói é um repúdio aos maus fãs. Mas também seria possível argumentar que é uma concessão a eles –pelos menos à ideia de que uma boa narrativa significa que existe sincronia entre autor e personagem.

Quando o espectador assistia a “Arrested Development” em 2003, talvez amasse ver os membros da família Bluth, mas não tinha a ilusão de que os deveria ver da maneira como eles se viam. Enquanto ao assistir a “Ted Lasso”, o espectador acredita que Ted Lasso é um cara decente, e os personagens secundários também o fazem. Aliás, a série toda o faz.

Essa trajetória pode ser percebida até mesmo nas carreiras de alguns criadores de séries. Um exemplo é Ryan Murphy, que foi de histórias ácidas e de humor sombrio, como “Popular”, uma sátira às séries e filmes sobre escolas de segundo grau, e o mordaz drama “Estética”, sobre cirurgia plástica, para o idealista “Hollywood” e a recentemente encerrada “Pose”, uma celebração sentimental dos pioneiros queer e trans da cena de dança de Nova York nas décadas de 1980 e 1990. Entre essas séries, ele criou “Glee”, que conseguia ser selvagem e sentimental ao mesmo tempo.

Ou considere Stephen Colbert, que passou uma década apresentando “The Colbert Report” como se fosse um paspalhão conservador, uma profunda imersão irônica que exigia distanciamento narrativo não só de seu programas como, em alguma medida, de sua própria pessoa.

Quando chegou a era Trump, Colbert se tornou apresentador do “Late Show” na rede CBS —ainda engraçado, ainda cortante, mas dessa vez brincando com base em sua personalidade real— e se tornou um dos apresentadores preferidos da oposição a Trump ao satirizar o presidente de forma direta, em vez de o fazer com falsa gentileza.

Nada acontece em um vácuo, na cultura, e quanto a isso a TV espelhou outras artes. Na revista Bookforum, o crítico Christian Lorentzen identificou um abandono da ironia na ficção literária —“uma maneira de dizer coisas e significar o contrário ou de significar coisas sem as dizer”—, e sua substituição por romances com um “nível cada vez menor de distanciamento irônico projetado pelos autores sobre seus alter egos”.

“Lolita”, de Nabokov, argumenta Lorentzen, seria recebido negativamente hoje –nem tanto pelo abuso sexual do narrador e protagonista Humbert Humbert contra uma menina, mas porque “não fica imediatamente óbvio que a autodefesa apaixonada de Humbert é parte integrante da condenação moral de Nabokov a ele”.

Seria tolo atribuir essa mudança à internet. Mas vou me arriscar a afirmar que ela aconteceu em paralelo à internet. Veículos como o Twitter promovem a paixão dos fãs e condenações inequívocas –e, porque trolls podem usar o anonimato oferecido por essas plataformas com má-fé, os usuários talvez sejam levados a presumir que cada comentário complexo, distanciado ou sardônico também seja feito de má-fé.

Assim, na mídia social é aceitável que a pessoa tenha opiniões fortes, enquanto ser seco ou irônico acarreta riscos. A internet recompensa a veemência e as afirmações taxativas, as declarações inequívocas que deixam clara a posição moral ou julgamento do autor. “Reproduzir um tuíte não significa endossar a mensagem" talvez seja a afirmação mais ignorada na internet, ainda que conste das regras de uso.

Isso não significa que todo mundo que usa a mídia social acredita que uma representação artística de uma determinada figura seja um sinal de aprovação. Mas é uma maneira conveniente de amplificar essa crença. Como escreveu Laura Miller na revista Slate, escritores já alteraram trechos de livros porque leitores furiosos não aceitam que personagens digam coisas com as quais os queixosos não concordem.

Em uma era em que todo advogado do diabo é visto como proponente de uma agenda satânica, o mesmo vale para os autores de diálogos para o diabo.

A era da sinceridade

É claro que estou generalizando, porque essa é a única maneira de tratar tendências culturais amplas. Se recuarmos diversos passos, o padrão se torna perceptível. A era de “Família Soprano” também nos trouxe séries sinceras como “The West Wing” e “Friday Night Lights”.

Também existem casos interessantes em séries que ficam entre as duas eras. “Girls”, que estreou em 2012 e acabou em 2017, talvez seja uma série concebida no espírito do primeiro período e que terminou por esbarrar frequentemente nas expectativas que surgiram no segundo.

Lena Dunham tinha uma visão nuançada de Hannah Horvath, uma escritora iniciante que era a protagonista da série que ela criou. Hannah tinha numerosas ambições e falhas; ela era inteligente e irritante, moralista e egoísta, batalhadora e privilegiada, pecadora e vítima de pecados alheios.

Mas porque “Girls” também foi comercializada como um marco geracional –uma posição sublinhada pela fome de Horvath de se tornar “a voz de sua geração”, uma fala transparentemente cômica cuja ironia se perde na citação—, ela era muitas vezes tratada como uma espécie de embaixadora cultural sincera da geração do milênio.

E quando as personagens não se comportavam de forma exemplar, a série veio a sofrer uma sucessão de reveses por elas não despertarem “empatia” –algo que o aspecto satírico do programa não estaria interessado em evocar. “Broad City”, uma excelente série passada no bairro do Brooklyn sobre amizades femininas, que estreou dois anos mais tarde, serve como boa comparação. A dupla central de protagonistas, perpetuamente chapadas e pouco dispostas a trabalhar, se comporta com um grau de irresponsabilidade verdadeiramente libertador.

“Schitt’s Creek”, que levou o Emmy de melhor comédia no ano passado, fez a jornada oposta. Começou como uma comédia de situação ácida, ao estilo de “Arrested Development”, sobre uma família rica que se vê forçada a trabalhar para ganhar a vida em uma cidadezinha. Mas a série ganhou força –e encontrou uma audiência dedicada– quando adotou um tom mais caloroso e sincero, com os ricos desajustados abraçando sua comunidade e encontrando objetivos e amor.

Em alguns casos, a mudança pode acontecer não só dentro de uma série, mas entre seus espectadores. A versão americana de “The Office”, que começou seguindo o espírito cáustico do original, foi se tornando mais doce e mais simpática à figura do chefe, Michael Scott, papel de Steve Carrell. E em sua vida póstuma nos serviços de streaming, especialmente durante a pandemia, a série se tornou uma espécie de lar reconfortante ao qual os fãs querem voltar sempre, um destino estranho para um programa cuja ideia original era a de o quanto o local de trabalho pode ser alienante, em sua condição de lar substituto.

Nada disso significa dizer que séries de TV calorosas e sinceras são piores, ou mais simples, ou mais idiotas, do que suas contrapartes mais irônicas. Sim, “Ted Lasso” às vezes depende pesadamente do sentimentalismo; a nova temporada tem um episódio de Natal extremamente piegas. Mas ainda assim o programa é muito mais nuançado do que as comédias de situação dos primeiros anos da televisão, cujos personagens sempre terminavam se abraçando e aprendendo juntos. A trama da série muitas vezes desafia a atitude de Lasso, a de que vencer não é sempre o mais importante, e contesta se essa postura é de fato saudável.

Aliás, usar ironia e desconforto como forma de contar uma história não significa que ela se torne niilista. “Família Soprano” era uma série intensamente moral, mesmo que Tony Soprano não o fosse. Mas os dramas protagonizados por anti-heróis e as comédias com personagens repulsivos se tornaram tão comuns que desenvolveram clichês próprios, exatamente como as séries velhas e moralistas do passado contra as quais eles representavam uma reação.

Pode ser que a hora de o pêndulo virar uma vez mais simplesmente tenha chegado, e que os criadores tenham percebido que explorar o desafio de ser bom pode ser tão interessante quando testar os 31 sabores de maldade disponíveis.

Em alguns casos, é também uma questão de quem está fazendo TV, de 2001 para cá. Anti-heróis como Tony Soprano e David Brent só surgiram, afinal, depois que caras brancos como eles passaram centenas de anos sendo heróis. As vozes e rostos da mídia televisiva se diversificaram, e se você está contando histórias sobre pessoas e comunidades que nunca tinham sido mostradas, sátiras selvagens podem não ser a escolha ideal de tom.

Não quero simplificar demais a questão. Séries como “Atlanta”, “Ramy”, “Master of None” e “Insecure” adotam, todas, posições complicadas com relação aos seus protagonistas. Mas também os encaram com mais simpatia do que, por exemplo, “Arrested Development”.

Fora da TV, acabamos de passar por anos de uma guerra de trolls na política, com ódio e veneno lavados por meio de memes supostamente brincalhões, e um presidente que se definiu como anti-herói e declarou que estava “brincando” para justificar sua defesa de interferência nos resultados da eleição e de um terceiro mandato que não seria constitucional, como se sua presidência fosse uma performance da qual ele pudesse se distanciar afirmando que estava só representando um papel.

Já que a era do Coringa na presidência deu lugar a uma administração cujo foco é a empatia e a catarse, a sinceridade pode ser um encaixe cultural mais adequado, agora.

Mas ironia e sinceridade não são, em si, partidos inimigos. São simplesmente ferramentas da arte, usadas para atingir os mesmos objetivos, de ângulos diferentes. Evocar emoção, testar o que significa ser humano, brincar com ideias e fazer com que as pessoas vejam as coisas com olhos novos. Uma das ferramentas cinzela, a outra aplaina; e cada qual faz algo que de que a outra não é capaz.

A TV é mais rica quando tem acesso a ambas e, felizmente, mesmo em um momento sincero como o atual, a ironia não morreu. Daqui a algumas semanas, a HBO lançará uma nova temporada de “Succession”, uma saga que cheira a enxofre sobre a oligarquia, parte drama, parte comédia e parte reportagem metafórica.

Um trailer lançado recentemente sobre a terceira temporada é um exemplo clássico do modo irônico e saboreia a troca de ofensas e a poesia de insultos da família Roy, que, apesar de serem deliciosas de ver, não se tornam menos desprezíveis.

É como um digestivo de absinto amargo depois da colher de açúcar servida por Ted Lasso. Mal posso esperar, sinceramente.

Tradução de Paulo Migliacci

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