Mostra traz um Geraldo de Barros plural, moderno até demais das fotos aos móveis

Obras no Itaú Cultural retratam como ele se guiou pelo erro e enxergou até mesmo sua doença como um desvio em benefício

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autorretrato de homem

Fotografia de Geraldo de Barros da série 'Sobras', de 1996, exibida na mostra 'Geraldo de Barros - Imaginário, Construção e Memória', no Itaú Cultural Geraldo de Barros/Fabiana de Barros e Instituto Moreira Salles/Reprodução

São Paulo

Geraldo de Barros sabia o que era certo, mas preferia o errado. A afirmação, vinda de sua filha Fabiana de Barros, que foi também sua assistente, é pelo fato de o artista viver até o fim, em 1998, atento aos acidentes.

Ao relevar o filme de sua primeira Rolleiflex, por exemplo, percebeu que havia batido várias imagens num mesmo negativo. Preferiu, assim, aprender a fotografar a partir das instruções que acompanhavam sua câmera sobre o que não se deveria fazer para tirar uma boa foto, seguindo à risca —e ao avesso— cada uma das negativas apresentadas, como "não fotografar contra a luz", "não manusear o negativo" e "não expor o negativo virgem por mais de uma vez".

Ele acreditava que era no erro, na exploração e no do domínio do acaso, que se encontrava a criação fotográfica e chegou a dizer que tentou conhecer a técnica só o suficiente para se expressar, sem deixar ser levado por excessos de virtuosismo.

Por essa postura, acabou incompreendido dentro do grupo de fotógrafos do Foto Cine Clube Bandeirante, espaço em que esteve filiado de 1949 a 1962 e onde contava ser visto como um louco, já que suas intervenções eram tidas como artificiais e indevidas pelo segmento mais conservador do fotoclube, que reivindicava a pureza do meio.

Em 1988, durante uma entrevista ao crítico Paulo Herkenhoff, inclusive, o artista revelou que, na classificação destinada aos associados, na qual os fotógrafos somavam pontos de acordo com prêmios e participações em salões, ele nunca passou do "novíssimo", o que não o impediu de protagonizar, em 1951, a primeira exposição no Masp dedicada à fotografia, onde apresentou suas "Fotoformas".

Na mostra, que ocorria num momento de discussões partidárias entre o figurativismo e o abstracionismo, Barros questionava o entendimento do meio fotográfico como um retrato objetivo da realidade, apresentando um conjunto de imagens abstratas e geométricas obtidas pela sobreposição e com intervenções e desenhos realizados no próprio negativo.

Consciente do debate em que estava metido, ele tinha entre suas histórias preferidas a anedota de um encontro seu com Henri Cartier-Bresson. Ele contava com muita risada o fato de que o fotógrafo francês não gostou das "Fotoformas".

Numa análise sobre a produção de Geraldo de Barros, o escritor e curador João Bandeira afirma que seus trabalhos apontam para um cruzamento das matrizes expressionistas com as construtivas e que, distante de vários nomes de sua geração, entre uma e outra tendência, o artista parece ter decidido ficar com as duas.

Essa pluralidade está presente na mostra "Geraldo de Barros — Imaginário, Construção e Memória", que ocupa três andares do Itaú Cultural com a promessa de apresentar "as 1.001 fases de Geraldo de Barros".

Na exposição organizada por Lorenzo Mammì e Michel Favre, com apoio da família, está um artista que transitou por fotografia, gravura, pintura e até peças de mobiliário, projetadas primeiro na Unilabor, empresa nos moldes de uma comunidade operária, e depois na fábrica de móveis Hobjeto, onde também funcionou por um ano a Rex Gallery & Sons, galeria de Barros com Wesley Duke Lee e Nelson Leirner que declarou —não sem deboche— "guerra ao mercado da arte".

Reconhecido dentro do grupo paulista de arte concreta, que defendia o planejamento racional da obra, chegou a participar do manifesto "Ruptura", que se dizia contra "o naturalismo 'errado' das crianças, dos loucos, dos primitivos, dos expressionistas, dos surrealistas".

Ao mesmo tempo, manteve contato com o núcleo abstracionista do Rio de Janeiro, que se formava em torno do crítico Mário Pedrosa, e com as experiências de terapia ocupacional comandadas pela médica Nise da Silveira, no Engenho de Dentro.

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'Abstrato', fotografia de Geraldo de Barros de 1949, da série 'Fotoformas', exibida na mostra 'Geraldo de Barros - – Imaginário, Construção e Memória', no Itaú Cultural - Geraldo de Barros/Instituto Moreira Salles/Reprodução

Não à toa, o primeiro andar dedicado à sua obra no Itaú Cultural contrapõe uma composição concreta de 1953 a uma parede com trabalhos influenciados por Paul Klee e pelo Engenho de Dentro. Nessa sequência, estão obras de traços simples, quase infantilizados, como a monotipia "Coming on Boat", de 1951, e a fotografia "A Menina do Sapato", de 1949, que, como outras, contou com intervenções em seu negativo, nas quais o artista aproveitou de um elemento urbano —o calçado deixado na rua— para criar outra imagem possível.

"É difícil definir Geraldo de Barros justamente porque ele fugiu de quase todas as definições, foi muito variável tanto nas técnicas como nas poéticas. É um artista que tem interesse na arte como experimento e, mesmo nos quadros concretos, há sempre um desvio que cria algo imprevisível e torna difícil reconstruir o ponto de partida", afirma Mammì.

"Ele gostava muito do acaso, via poesia e filosofia nele e já no fim da vida falou que a existência de Deus talvez pudesse ser provada pela coincidência e pelo acaso, já que sua vida pode mudar por isso", acrescenta a filha Fabiana.

homem idoso sentado com bengala
Retrato de Geraldo de Barros de 1998 exibido na mostra 'Geraldo de Barros - Imaginário, Construção e Memória', no Itaú Cultural - Bob Wolfenson/Divulgação

Essa forma positiva de ver os desvios aparece até mesmo na maneira que Barros encarou as quatro isquemias cerebrais que comprometeram gravemente sua fala e movimentos, uma vez que costumava brincar que o acidente o havia ajudado a criar melhor.

"Sempre dizia que tinha perdido tudo que não interessava", lembra sua filha Lenora de Barros, também artista. "Ele perdeu a capacidade da fala, mas, quando uma palavra não vinha, desenhava com rapidez. Perdeu o raciocínio aritmético, mas, em compensação, o raciocínio geométrico explodiu."

Com a ajuda de assistentes, Barros desenvolveu pinturas geométricas em laminados plásticos e, mais tarde, iniciou a série "Sobras", seu trabalho mais intimista, realizado a partir do arquivo de fotos da família e no qual retoma procedimentos de colagens, sobreposições, recortes e desenhos que são feitos diretamente nos negativos —em edição, estão suas próprias memórias.

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Colagem de Geraldo de Barros da série 'Sobras', de 1996, exibida na mostra 'Geraldo de Barros - Imaginário, Construção e Memória', no Itaú Cultural - Michel Favre/Reprodução

Acostumado a explorar cada experimento ao limite, e avaliando cada um deles como ancorados em determinado momento da vida, Barros chegou a guardar suas fotografias da década de 1950 no fundo de um armário e, mais tarde, passou a rir ao lembrar de ter dito que nunca mais trabalharia com o meio.

O artista, que circulou entre diversos grupos sem nunca se filiar completamente a nenhum manifesto e deixou uma obra variada construída com hiatos de tempo, soube manter tanto a pluralidade como a coerência.

Dessa forma, se há nas fórmicas uma continuidade em relação à produção do mobiliário —o uso de materiais facilmente reprodutíveis e que poderiam permitir a socialização da arte—, as "Sobras" também representam uma extensão do seu pensamento. "Um negativo achado todo riscado e empoeirado, se fornecer um bom resultado fotográfico, a fotografia é de quem cria, não de quem expôs o negativo", disse, ao comentar as "Fotoformas".

Segundo Geraldo de Barros, o acidental jamais significou perda de controle, mas sim domínio. Ainda que fosse um "artista que se encontra na hora do fazer", "descobrindo as aberturas possíveis, incorporando os acidentes de percurso'', nas palavras de Michel Favre. Nesse sentido, suas obras começavam a ser construídas bem antes.

"Ele as fazia na cabeça", lembra Fabiana, que, já no fim da vida de Barros, costumava encontrar o pai sentado na sala de sua casa, olhando para cima, pensativo. Num desses dias, ela se aproximou de mansinho e perguntou "onde é que ele estava". Como resposta, ouviu "estou bolando".

Geraldo de Barros – imaginário, construção e memória

  • Quando Até 7 de novembro (terças a domingos, de 12h às 18h)
  • Onde Itaú Cultural – av. Paulista, 149, São Paulo
  • Preço Grátis
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