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Chris Fuscaldo

Zé Ramalho foi esperto ao sair da barafunda em que Sérgio Reis se meteu

Artista prefere ficar na dele, mas aprendeu com um episódio de 1980 que há um limite

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Chris Fuscaldo

Jornalista e autora do livro "Viver é Melhor que Sonhar" (ed. Sonora), escreve uma biografia de Zé Ramalho

Dois anos após a explosão de “Avôhai” e um depois do lançamento de seu segundo álbum, que trouxe “Admirável Gado Novo”, em abril de 1980, no auge do sucesso, Zé Ramalho voltou a sua Paraíba para apresentar pela primeira vez o repertório que o alçou à fama.

Antes do show para mais de 4.000 pessoas no ginásio do Clube Astréia começar, foi procurado por uma comissão do Partido dos Trabalhadores, o PT. Pediam que ele lesse no palco um manifesto de repúdio à prisão do líder metalúrgico Luis Inácio da Silva, o Lula.

O cantor e compositor se negou e, também, se recusou a pôr seu nome num abaixo-assinado. “Sou um artista e não um político; tudo o que tinha a dizer está nas minhas músicas”, declarou ele, segundo documentaram jornais da época.

No dia seguinte, um dos principais jornais locais estampavam uma dura crítica ao conterrâneo famoso, intitulada “entre a massa e o gado” e assinada por Carlos Antônio Aranha, colega com quem Zé outrora dividiu palcos em João Pessoa.

O jornalista cutucou a onça com vara curta e, no mesmo dia, sentiu no corpo a força da vingança —saindo da cidade, Zé Ramalho pediu para o motorista do ônibus que carregava toda sua banda parar na frente da Redação do jornal A União, desceu, pediu que chamassem Aranha na portaria, acertou um soco nele, e entrou no ônibus deixando o homem sangrando e prometendo não voltar tão cedo à capital paraibana.

Zé Ramalho, que nunca se posicionou politicamente, foi obrigado a se posicionar neste sábado, quando viu que parte dos artistas que participavam de um novo álbum do cantor Sérgio Reis começaram a se retirar do projeto devido ao áudio vazado em que o sertanejo combinava um complô contra a democracia.

A diferença do que aconteceu anteontem, quando ele se retirou do álbum de Sérgio Reis, é que, agora, Zé voltou a declarar que não se pronunciará, mas pelo menos incluiu seu nome no abaixo-assinado histórico em que Guarabyra, Maria Rita e Guilherme Arantes também puseram os seus.

Guttemberg Guarabyra foi o primeiro a sair do projeto. Ele desistiu de gravar com Sérgio Reis “Sobradinho”, parceria sua com Luiz Carlos Sá de 1977. Guilherme Arantes relutou, tentando dissociar o artístico do “terreno extramusical”, mas também acabou se retirando do quase finalizado álbum e desautorizou o cantor a incluir no disco o dueto na canção “Planeta Água”, de 1981.

Maria Rita fez como Zé Ramalho. Não se pronunciou, mas por meio de sua assessoria informou à imprensa que não emprestaria sua voz para uma regravação de “Romaria”, clássico de 1977 assinado por Renato Teixeira.

Amigo e parceiro de Sérgio Reis na música caipira, Teixeira não vetou a composição até agora, mas parece ter deixado uma indireta em seu Instagram. “A democracia é um bem conquistado a duras penas. A música é uma arte democrática. Portanto, jamais usarei meu prestígio para tentar usurpar o nosso sistema democrático”, escreveu.

No sábado, Zé Ramalho enviou por meio de sua produtora, a Avôhai Music, uma nota anunciando que desautoriza o lançamento em qualquer suporte, físico ou digital, da composição de sua autoria “Admirável Gado Novo”, autorizada e gravada pelo sertanejo no início de 2019.

Diz a nota que “a gravação perdeu o sentido e tanto o compositor quanto sua editora não autorizarão a utilização da obra". "Solicitamos ao escritório do cantor Sérgio Reis que não utilize o fonograma de forma alguma. Pedimos ainda que se abstenha de usar por meios radiofônicos, eletrônicos ou qualquer outro, para que esta faixa não seja veiculada de forma alguma. O artista declara que é tudo que tem a dizer sobre esse assunto e não mais se pronunciará.”

O artista paraibano nunca se pronunciou publicamente, mas colegas de trabalho falam entre dentes que ele tendia a apoiar o atual presidente na época das eleições. Como biógrafa de Zé Ramalho, nunca arranquei posicionamento político dele em nossas conversas, mas o ouvi dizer que eu estava “muito petista” na época em que eu critiquei abertamente em minhas redes sociais o processo de impeachment de Dilma Roussef.

Depois que me indignei e iniciei um debate com meu biografado, assistida por dois representantes de uma editora que, na época, pensava em lançar o livro, ele tirou de tempo e amenizou. “Não leve tão a sério o que eu digo.”

“Zé Ramalho não mais se pronunciará”, diz a nota e diz o seu comportamento nesses 43 anos de carreira. Não à toa, nada tem publicado em sua página no Facebook. A nota foi enviada diretamente à imprensa e publicada no perfil pessoal de um de seus empresários, sócio do escritório Jerimum Produções que vende shows de Zé Ramalho. Mas será que ele é obrigado a se pronunciar?

Nos anos 1980, Zé era comumente chamado de “pau-de-arara” em reportagens de jornal e foi abandonado pelo mercado após ser acusado de plágio (a revista em quadrinhos da qual tirou um verso para “Força Verde” é que tinha plagiado o poeta irlandês William Yeats, mas foi o paraibano quem pagou o pato). Depois de ser tão criticado pela imprensa e até por públicos desavisados, vale a pena entrar nessas brigas e ver sua estabilidade abalada mais uma vez?

Carlos Aranha decretou, em 1980, depois do episódio que quase o fez prestar queixa à polícia que “Zé Ramalho está despreparado para receber qualquer tipo de opinião” e que o artista “reza a cartilha de um descompromisso que, agora, passa a ser a alienação frente à realidade do país”.

Pois bem, chegamos a 2021 e, hoje, novamente, quem fica quieto naturalmente acaba escolhendo um lado. Zé Ramalho prefere ficar na dele, mas aprendeu com o episódio de 1980 que há um limite. E, antes tarde do que nunca, o compositor que deu muito mais do que recebeu foi esperto ao sair fora dessa barafunda em que Sérgio Reis se meteu.

Não à toa, seus fãs, mesmo sem saber de fato o posicionamento político de Zé Ramalho, estão celebrando nas redes a atitude deste que cantou a “Vida de Gado” do brasileiro comum.

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