Entenda como Matuê chegou ao topo do pop nacional com seu trap hedonista e viajante

Com Auto-Tune, jargões e refrãos chiclete, o trapper mais ouvido do país acumula recordes no streaming e agora mira o reggae

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O trapper cearense Matuê

O trapper cearense Matuê Divulgação

São Paulo

Para lançar “Quer Voar”, seu mais recente single, Matuê hesitou em falar com Emicida. Ele precisava que o rapper paulistano autorizasse o uso do sample de uma música dele, “Beira de Piscina”. “Cheguei lá pequenininho, pensando ‘esse cara vai liberar o sample para eu usar numa música que fala várias putarias?’. Mas ele conseguiu reconhecer a minha arte e liberou a parada.”

A insegurança do trapper cearense tem raiz numa desconfiança que se estabeleceu em torno do seu nome. Mesmo sendo um fenômeno de audiência —“Quer Voar” foi tão ouvida na semana de seu lançamento que extrapolou o Brasil e figurou na parada global da Billboard—, Matuê nunca foi exatamente bem visto por uma fatia grande de fãs e ícones do rap no país.

O trapper cearense Matuê
O trapper cearense Matuê - Divulgação

Sua música, que envolve batidas atmosféricas de trap, a vertente mais pop do rap, Auto-Tune, refrãos chiclete e letras hedonistas, pode ser vista como uma variação alienante de um estilo que surgiu e se desenvolveu com uma consciência social aguçada. Mas as coisas estão mudando para ele.

“Máquina do Tempo”, o primeiro álbum de Matuê, saiu há um ano, quebrando vários recordes de audiência no streaming. Com “Quer Voar”, ele se manteve ainda mais em alta. É o trapper mais ouvido do país, com números que estão no mesmo patamar das estrelas do sertanejo, forró ou funk. No Spotify, tem três vezes mais ouvintes mensais que Emicida. No YouTube, seus vídeos têm mais de 1 bilhão de visualizações.

Visto como moda passageira com prazo de validade curto, Matuê se tornou uma voz inevitável na música brasileira, dos stories do astro do forró João Gomes às playlists de jogadores de futebol aos sons automotivos de todo o país. E hoje é impossível negar a maior de suas qualidades, a capacidade única de fazer música pop extremamente contagiante.

“É interessante ver como finalmente a galera começa a reconhecer um pouco o meu trabalho. As pessoas estão começando a absorver o meu trabalho de outra forma agora. Eu tinha receio de ser mal compreendido pelos antigos. Independente de eu ter respeito por eles”, ele diz.

Mas, se o respeito demorou a chegar, a construção do trapper mais ouvido do país também não foi de um dia para ou outro. Na verdade, sua trajetória de vida é tão única e improvável quanto o trap praiano, chapado e descontraído que ele criou.

Nascido em Fortaleza, ele tinha uns seis ou sete anos quando os pais resolveram tentar uma vida melhor nos Estados Unidos, na mesma época do atentado de 11 de Setembro, há 20 anos. “A gente já estava com as malas prontas e aconteceu aquilo lá. Todo mundo falava ‘não vai não, vocês são doidos’. Mas deu tudo certo. Fiquei três anos lá e voltamos porque minha avó ficou doente. A gente conseguiu sair de uma situação bem básica para ter uma vida digna.”

Morando na Califórnia, Matuê foi exposto ao rap americano da época, especialmente as produções de Dr. Dre, que estourava nas vozes dele e também de Snoop Dogg e Eminem. “Principalmente onde eu morava. Ouvia na escola, no meu bairro. Não tinha como fugir disso.”

Desde então, Matuê virou um aficionado do gênero, que se desenvolveu com Lil Wayne, Drake e Nicki Minaj e, mais recentemente, com o trap de Migos e Gucci Mane, entre outros. Mas, na adolescência, o cearense era fã de reggae e montou as primeiras bandas inspiradas pelo estilo jamaicano antes de se mudar para a Europa com uns 20 anos de idade.

“Eu trabalhava desde os 17 anos, acumulei uma graninha. Comprei um carro, dava aulas de inglês e outras paradinhas extra. Morava na casa de uma amiga, não gastava com isso. Era uma situação confortável. Mas sou um cara muito inquieto. Vendi minhas coisas e fui até La Rochelle.”

Ele foi encontrar na pequena cidade costeira no sudoeste da França um amigo de lá que tinha conhecido em Fortaleza e acabou dormindo por anos no sofá da casa dele. Foi lá que o brasileiro voltou a se interessar por música.

“Fiz umas boas amizades e eles começaram a botar pilha com essa história de música. Já não queria mais nada com música. Eu era muito dedicado [na adolescência], tive que largar e larguei com raiva mesmo. Nem estava pensando em voltar a fazer música nem nada.”

Nessa época, Matheus de fato virou Matuê, apelido que ganhou porque fumava muita maconha. E ele ainda passou um período em Berlim antes de ficar ilegal na Europa —ele prefere não revelar o motivo, mas ri quando perguntado se estava traficando drogas. “Sem comentários. Foi uma longa jornada até eu voltar. Tive que fazer várias coisas para poder voltar direito e com alguma graninha. Mas deu tudo certo, sem ajuda de ninguém.”

Foi na Europa também que Matuê arrumou seu emprego mais duradouro —dar aula de inglês online para chineses. “Fiquei nessa três anos, todos os dias, seis horas por dia. Era dinheiro contado, mas dava certo. Dava para eu fazer a música e isso. Era minha oportunidade de viver de música. Em algum momento, fiquei duas semanas sem dar aula porque comecei a fazer shows e fui demitido. E, desde então, tirando a pandemia, nunca tive um final de semana sem show.”

O momento de virada para Matuê foi em 2017, com o single “Anos Luz”, que inaugurou sua carreira no rap após uma dose de autoconfiança. “Eu ouvia muito trap, mas isso era muito acima do meu nível de confiança. Olhava para os caras e eles pareciam personagem de cartum.”

Após o sucesso de “Anos Luz”, o trapper desenvolveu uma estratégia improvável para a pressa da indústria fonográfica atual —lançar poucas músicas, mas todas com sucesso estrondoso. Outra sacada foi tirar sarro de si mesmo nas letras. Em “Kenny G”, hit de 2019, ele celebra o sucesso enquanto brinca com quem diminui a sua música. No clipe, um sol e uma lua têm um diálogo. “Eu não gosto de Matuê não, aquela desgraça. O cara se acha melhor que todo mundo, canta porra nenhuma”, dizem os astros.

Outro exemplo é “Quer Voar”, em que ele se proclama o “comedor de primas”. “Isso vem da música ‘Máquina do Tempo’, que eu falo ‘foi mal por comer a sua prima’. Era uma zueira com o [rapper] Menestrel. Mas eu não tinha comido a prima dele. Ele queria saber o que eu fazia para ter liberdade na hora de criar. Eu só falei ‘mete umas coisas nada a ver e seja o que Deus quiser, vai no instinto, seja engraçado e intuitivo’. E aí eu mostrei para ele como é fácil.”

Esse é só mais um jargão do trapper, assim como o “Tuêzinho do 085”, uma referência ao DDD de sua terra natal. Ainda que tenha surgido numa onda do trap ainda muito ligada à música americana, Matuê tem desenvolvido uma estética que conversa cada vez mais com o Brasil, do sample de Charlie Brown Jr. em “Máquina do Tempo” ao estilo despojado e viajado das batidas —que casam mais com um passeio na praia do que com uma festa numa boate.

“É Sal”, música do disco “Máquina do Tempo”, fala sobre a vivência na capital cearense, mas é mesmo em “Quer Voar” em que ele estabelece as ligações com o rap de sua área. Na letra, Matuê diz que é “lenda tipo Don”, se referindo ao rapper Don L, nome seminal do estilo em Fortaleza, ex-integrante do grupo Costa a Costa e que hoje tem uma respeitada carreira solo.

“Quando eu escrevi essa linha, fiquei pensando ‘pô, será que o cara vai achar ruim?’. Achei que ele ia falar ‘tu é lenda onde, tá viajando?’. Mas foi a reação contrária. Ele sentiu que eu estava mandando um salve. O cara, para nós, é referência máxima. Ele vem de uma época em que o Don L era o Don L. E só ele tinha essa moral de participar do rap porque ele é um gênio, e não tinha espaço para quem não fazia aquela linha de som, que fazia coisas que são mais para pista.”

Matuê chama Don L de “gênio maluco das palavras e dos sons” e diz que, para além de Drake ou Future, foi o conterrâneo quem abriu a cabeça dele para o uso do Auto-Tune, uma de suas marcas registradas. “Foi um dos primeiros caras que eu vi usar o Auto-Tune, naquela música [‘Sangue É Champanhe’] com a Flora Matos. E era um mano da minha cidade. Tinha pessoas aqui que conheciam o cara. As pessoas têm que entender o valor que isso tem.”

Defensor da legalização da maconha, Matuê recentemente também se posicionou contra Jair Bolsonaro, dizendo que apoiadores do presidente não deveriam ouvir sua música. Na ocasião, em meio às manifestações do último Sete de Setembro, acabou recebendo uma enxurrada de comentários —inclusive xingamentos racistas— nas redes sociais.

Matuê também diz que já usou todas as drogas que menciona em suas letras, mas na pandemia se tornou pai pela primeira vez e trocou todas elas —menos, claro, a maconha— pelo tratamento com o chá psicodélico de ayahuasca. “Desencorajo fortemente. Usei tudo isso, mas poderia estar há alguns anos na ayahuasca, feliz e sem precisar de nenhuma substância. Estava vivendo minha vida, mas perdido no molho de ser um grande artista e ter responsabilidades. Sinto que foi isso que me botou na conexão comigo mesmo de novo.”

Especialmente agora, fica claro como o bon vivant destemido das letras e dos clipes é só uma faceta de um artista que não esconde as inseguranças e que, longe do microfone, troca o deboche do alter ego por uma postura humilde. Em outras palavras, o estilo de vida de drogas, sexo e ostentação é só o cenário criado para que as brincadeiras e sacadas se transformem em pura música pop.

E, esteticamente, para Matuê, o futuro está em Fortaleza —e no reggae. “Antes de criar autoestima para fazer rap, eu fazia reggae. Sempre quis fazer música para muita gente ouvir. E [o reggae] é como se fosse uma brisa da cidade. Existe um DNA musical, aquilo mexe com nossos ouvidos de um jeito que representa Fortaleza.”

“Quando vi os remixes de reggae que fazem com o meu som, isso me inspirou muito. Consegui entender como a galera se via representada naquilo ali. Quero seguir nesse caminho, às vezes com um pé no reggae, outras com um pé no trap. Mas quero fazer algo para a rapaziada daqui ouvir, dançar junto e se sentir na vibe que é Fortaleza.”

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