Funk passou por boom em 2019, mas rádios continuam dominadas por sertanejos

Gênero musical ganhou as páginas policiais com a prisão do DJ Rennan da Penha e viu estourar a sua vertente mais acelerada, o 150 BPM

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São Paulo

São raros os momentos em que um grande astro do exterior decide gravar uma música brasileira. Há mais de meio século, a bossa nova chegava à voz de Frank Sinatra, consagrando internacionalmente o estilo criado por João Gilberto. Enquanto 2019 chega ao fim levando consigo o pai da bossa, o ano também escancarou os novos caminhos para a nossa música popular.

“Ela É do Tipo”, um dos hits do ano no Brasil, foi regravada recentemente pelo artista mais ouvido do mundo nos anos 2010, o rapper Drake. A música, do funkeiro carioca Kevin O Chris, foi apenas uma dentre as dezenas que fizeram sucesso na vertente mais acelerada do gênero, o 150 BPM.

O sucesso de Kevin O Chris vem de antes, mas chegou ao ápice em 2019. Em abril, ele dividiu o palco com o rapper Post Malone no Lollapalooza, como convidado de honra em horário nobre e para uma das plateias mais cheias do festival paulista.

No Spotify, ele e Anitta foram os únicos nomes não sertanejos entre os dez mais ouvidos do ano no Brasil. No YouTube, emplacou quatro entre as 50 músicas mais tocadas.

hoje, MCs de destaque no funk 150 já fazem parte de grandes gravadoras, mas a ascensão do estilo aconteceu longe dos escritórios, ligada à produção e divulgação caseira, com pouco investimento.

O ritmo se popularizou em bailes de favela do Rio de Janeiro, como o da Gaiola —famoso nos versos de Kevin O Chris— e da Nova Holanda. O principal DJ do movimento hoje é um nome bastante conhecido, e representativo para a música brasileira em 2019.

Rennan da Penha foi o idealizador do Baile da Gaiola, que reunia milhares de pessoas semanalmente nas ruas do Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro. Foi também um dos primeiros a tocar as músicas em 150 BPM, no começo consideradas esquisitas —aceleradas demais para as danças, experimentais demais para cair na boca do povo.

Preso em abril, acusado de associação para o tráfico, o DJ passou sete meses na cadeia, e saiu com a decisão do STF de que um réu só pode ser encarcerado após esgotados todos os recursos. 

Da cadeia, Rennan viu os pedidos por sua liberdade se multiplicarem na classe artística e chegou a concorrer a prêmio no Grammy Latino e a até ganhar em duas categorias do Prêmio Multishow.

Mesmo com letras muito sujas para o rádio, o funk 150 ficou tão popular que se infiltrou no mainstream.

Em 2019, covers de medleys com funks “da Gaiola” viraram quase obrigatórios em shows de artistas muito populares, de pagodeiros famosos como Ferrugem até estrelas do sertanejo como Naiara Azevedo.

Mesmo Anitta, hoje mais cantora pop do que funkeira, se rendeu à “putaria acelerada” —e com uma composição de Ludmilla. “Onda Diferente”, que traz ainda vocais do americano Snoop Dogg, é um funk em 150 BPM que foi cantado até por Ivete Sangalo no Rock in Rio.

A faixa é possivelmente o único trunfo de “Kisses”, álbum trilíngue em que Anitta se afunda na onda latina do reggaeton. Além de dezenas de milhões de visualizações, a música também trouxe uma dor de cabeça, já que as (ex?) amigas brigaram após uma falta de acordo na divisão dos direitos autorais.

Pabllo Vittar também teve um ano movimentado. Além dos hits “Parabéns” e “Amor de Que”, a drag maranhense fez turnês por Europa, América Latina e Estados Unidos —cantando nas paradas gays de Los Angeles, Nova York e San Francisco—, foi citada pela Time como uma das líderes da próxima geração. Isso tudo apostando no pagodão baiano e no bregafunk do Recife.

Enquanto o funk se multiplicou na internet, as rádios continuaram na mão dos artistas de gravadoras e com maior poder de investimento, os sertanejos. E em 2019 eles tiveram uma inclinação especial a um ritmo de origem latina, a bachata.

Guiada por violões com som de guitarra e bongôs, a sonoridade está presente nas três músicas mais tocadas nas rádios brasileiras no ano. São elas “Cem Mil”, de Gusttavo Lima —que ainda teve “Milu”, outra bachata, entre as dez primeiras—, “Quando a Bad Bater”, de Luan Santana, e “Estado Decadente”, de Zé Neto e Cristiano.

Com um grande projeto, “Todos os Cantos”, gravado em todas as capitais do país, Marília Mendonça se manteve em evidência, e teve o hit “Todo Mundo Vai Sofrer”. Entre as novidades do sertanejo está Yasmin Santos, que emplacou sucessos como “Para, Pensa e Volta” e “Sofro onde Eu Quiser”.

Em 2019, a música popular se renovou, mas gigantes do passado partiram. Beth Carvalho deixou vago o posto de Madrinha do Samba, Serguei levou consigo suas insólitas histórias roqueiras, Marcelo Yuka —letrista dos primeiros anos d’O Rappa— teve interrompida sua luta por justiça social.

Mas a maior perda do ano foi João Gilberto, que com a mão direita levou a batida do samba para o violão e fez de suas bossas um sonho de país. De sua trajetória e legado internacionalmente conhecidos sobraram brigas na Justiça.

Sua partida encerra a utopia de Brasil como país do futuro, sonhada na arquitetura modernista, no cinema novo, no futebol-arte e na bossa nova.

No Brasil de Kevin O Chris e Marília Mendonça, o sussurro de João Gilberto é —só— uma saudade.

 

Também tocou em 2019

Crias da internet, Billie Eilish, 18, e Lil Nas X, 20, levaram a geração pós-millennial às paradas de sucesso nos EUA. Nas X uniu country e hip-hop para estabelecer o recorde de 19 semanas seguidas com a música mais tocada do país, ‘Old Town Road’. A cantora alcançou o estrelato com disco gravado em casa

Escorada no trap, Ariana Grande virou despojada e festeira em ‘Thank U, Next’. Taylor Swift desistiu de pagar de durona e resgatou temas pessoais em ‘Lover’. Lana Del Rey aperfeiçoou sua desilusão retrô em ‘Norman Fucking Rockwell!’. Cantando sobre autoestima, Lizzo fez o disco pop que virou a aposta do Grammy, ‘Cuz I Love You’

Veteranos da MPB como Jards Macalé, Zeca Pagodinho, Elza Soares e Maria Bethânia lançaram discos interessantes, enquanto novatos como Ana Frango Elétrico, MC Tha, Luisa e os Alquimistas e Saskia mostraram suas credenciais

Duda Beat virou queridinha da nova MPB. Festivais como o goiano Bananada e o pernambucano Coquetel Molotov apostaram na representatividade feminina, negra e LGBTQ

No rap, Black Alien cantou sobre os percalços do vício e sua sobriedade em ‘Abaixo do Zero’. Emicida deixou a inquietação verbal para refletir em ‘AmarElo’. Em ‘Ladrão’, Djonga se firmou como o MC de discurso mais afiado do país. Recayd Mob e Matuê mostraram que o trap não foi moda passageira

O bregafunk teve seu melhor ano com hits de Felipe Original, Dadá Boladão e Shevchenko e Elloco. Os Barões da Pisadinha chegaram a uma grande gravadora com um novo tipo de forró eletrônico

Dilsinho e Ferrugem renovaram o pagode, enquanto Thiaguinho e Péricles lançaram discos ao vivo

Sandy & Junior, Los Hermanos e ‘Amigos’ atiçaram a nostalgia com grandes turnês de reunião

O BTS reuniu 45 mil pessoas em cada uma das duas noites seguidas de shows em SP. Com público equiparável ao de Paul McCartney, este ano, foi um marco do k-pop no Brasil

Rock in Rio, com Drake, e Lollapalooza, com Kendrick Lamar, olharam para o rap na hora de montar escalações. Iron Maiden trouxe sua turnê imagética, enquanto o Arctic Monkeys mostrou um rock mais adulto. King Crimson estreou no Brasil, enquanto o Slayer se despediu dos palcos. Patti Smith encantou no Popload Festival

Com flamenco e eletrônico, a catalã Rosalía puxou o bonde do pop cantado em espanhol. O colombiano J Balvin e o porto-riquenho Bad Bunny fizeram ‘Oasis’, primeiro álbum latino a ter todas as faixas entre as cem mais tocadas do Spotify

Nos deixaram o ‘maldito’ Walter Franco, o cantor de ‘Jenifer’ Gabriel Diniz, o produtor André Midani, nossa primeira DJ mulher Sonia Abreu e o vocalista do Angra, Andre Matos

Erramos: o texto foi alterado

"Estado Decadente" é uma música de Zé Neto e Cristiano, e não de Henrique e Juliano. Texto já foi corrigido

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