Descrição de chapéu

Caravaggio, nascido há 450 anos, fez pinturas com as luzes do teatro

Iluminação arbitrária de suas obras era construída com a artificialidade do palco, dando a chave para entender o barroco

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Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade"

Caravaggio, pintor italiano nascido há quase exatos 450 anos, soube destruir um dos fundamentos mais fortes da pintura desde o Renascimento —o espaço, esse instrumento de representação do mundo que permite situar, com rigor, todos os volumes visíveis.

Sua destruição se opera por duas maneiras. A primeira, é pela máxima concisão em torno dos objetos pintados –mulheres, homens e naturezas-mortas. Visão sintética, que desdenha o que está em torno deles.

A segunda, é a iluminação. Mancini, no século 17, escreve que Caravaggio emprega “sombras muito escuras e luzes muito claras”. Na sua síntese preocupada com os seres representados, mesmo nas primeiras obras em que a luz é mais homogênea, ele cria fundos abstratos.

Mas, nas pinturas em que se encontra plenamente o claro-escuro, o mundo é devorado pelas trevas. A luz repousa sobre os volumes, que ela revela —ou antes, que ela cria. Há um formidável combate entre a existência, que é um atributo da luz, e tudo o que não existe, porque não é visível.

No “Amor Adormecido”, do palácio Pitti, apenas algumas pinceladas brancas bastam para fazer surgir uma asa invadida pela noite.

A iluminação empregada por Caravaggio é arbitrária. Dispõe focos artificiais, refletores, de maneira a fazer sobressair o que interessa. Em “A Vocação de São Mateus”, de onde vem a claridade que permite ver as pernas sob a mesa? Não há resposta. O pintor necessitava mostrar isso, e basta. Só em uma tela, “As Sete Obras da Misericórdia”, a fonte de luz é vista numa tocha.

A verdade de Caravaggio é construída com a artificialidade do palco. Sua pintura é baseada num princípio da mais poderosa teatralidade.

pintura
'Flagelação de Cristo (Cristo na Coluna)', pintura de circa 1607 do artista italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), que completa 450 anos de nascimento em 2021 - Artvee/Reprodução

A arte e a cultura durante o século 16, florentina e romana, depois do esplendor trazido pelo Renascimento clássico, com Rafael, Michelangelo, Leonardo, entrara em crise. Essa crise é chamada de maneirismo, em que a sofisticação erudita, destinada a aristocratas, se associava a bizarrices que manipulavam as regras clássicas da perspectiva e da anatomia, criando espaços vertiginosos e seres anômalos, em anatomias que se alongavam e se contorciam.

Por voltas de 1600, algo ocorre. Que o mundo é ilusório, que os sentidos enganam, é uma velha história sabida desde Platão, pelo menos. Mas, agora, se assume que essa ilusão é só o que se tem e que o mundo é um grande teatro.

Os gênios contemporâneos de Caravaggio não desmentem. Cervantes mostra que se podem ver gigantes em moinhos de vento; Shakespeare leva o teatro a um apogeu e faz seu Macbeth dizer que o homem é “um pobre ator que se pavoneia e se agita durante sua hora no palco e depois não é mais ouvido”.

Monteverdi dá forma a um novo gênero teatral, a ópera. Galileu busca não a metafísica do universo, mas o mecanismo que move o esplêndido espetáculo celeste. Pouco mais tarde, Calderón de la Barca dará títulos expressivos para suas peças –“A Vida É Sonho”, “O Grande Teatro do Mundo”. E Luís 14, em Versalhes, transformará a política na mais grandiosa encenação.

Mais do que qualquer característica estilística, o teatro é a grande chave para compreender aquilo que chamamos de barroco —e que toma corpo ao longo do século 17. O mundo barroco é um mundo concebido como teatro. Nele, o maravilhamento, as emoções provocadas sobre os sentidos, os fortes movimentos da alma, tomam um lugar preponderante como motores das ações humanas.

Caravaggio abriu caminhos para essa nova sensibilidade. Seu sucesso foi enorme. Algumas de suas obras escandalizaram. Teve inúmeros imitadores e sua arte fecundou grandes gênios –Ribera, Velázquez, Rembrandt, o jovem Rubens, entre muitos.

Seu teatro era o do “realismo”, no sentido de que trazia para as telas uma população pobre e sofrida –velhas e velhos enrugados, com os pés sujos, prostitutas que serviam de modelo para ele.

A contrarreforma precisava fidelizar toda a população contra a expansão do protestantismo. Pintar os santos e santas como pobres, descalços e rudes, criava um evidente processo de identidade –dentro das igrejas, os desvalidos se viam representados.

Sensível à beleza masculina, pintou jovens nus, eróticos, provocantes. Diferentes, porém, dos de Michelangelo Buonarroti. Nada de belas anatomias idealizadas, inspiradas na antiguidade clássica, mas garotos que ele recrutava nas tavernas romanas, os “ragazzi di vita”, como os de Pasolini.

Bad boy, foi preso seis ou sete vezes pela polícia romana e chegou a cometer assassinato por causa de uma briga no jogo de péla, o antepassado do tênis. Uma vida vulcânica, correspondendo à “força vulcânica” que Jacob Burckhardt detectava em sua obra.

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