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Ainda não assistiu a 'Round 6' na Netflix? Veja tudo o que você não está perdendo

Série sul-coreana nada tem a dizer sobre desigualdade e livre arbítrio além de uma sucessão de truísmos tediosos

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Mike Hale
The New York Times

Se você sabe que, a esta altura, já deveria ter visto o seriado sul-coreano “Round 6”, da Netflix, mas teve a sorte ou a prudência de não fazer isso, eis algumas das coisas que você está perdendo.

Há o design de produção e o figurino, vistosos mas não especialmente interessantes, dos quais você talvez tenha apanhado alguns vislumbres nas redes sociais. Escadarias ao modo Escher e uma decoração de caixinha de brinquedos, mas em escala gigantesca –acompanhada por macacões monocromáticos e e máscaras ameaçadoras–, trazem à memória alguns de nossos trabalhos distópicos favoritos, como “The Prisoner”, “O Conto da Aia” e “La Casa de Papel”, da própria Netflix. O fato de que tudo isso pareça ter sido pensado como tema imediato para memes foi com certeza um dos fatores para a surpreendente onipresença da série, que estreou em setembro.

(Uma segunda temporada ainda não foi anunciada, mas apostar contra isso seria tão insensato quanto confiar em qualquer dos desesperados trapaceiros que protagonizam a história em um jogo de bolas de gude.)

Também existe um elemento lúdico, que parece ter sido o principal atrativo para os adolescentes da minha casa. Os desafortunados protagonistas, isolados em uma ilha distante, são forçados a jogar versões muito elaboradas, e mortíferas, de brincadeiras infantis, algumas conhecidas dos telespectadores ocidentais (cabo de guerra, o jogo da estátua) e outras específicas da Coreia, como o “squid game” que dá título à série.

Alianças são formadas e os jogadores revelam sua verdadeira personalidade; os derrotados são mortos imediatamente. Os seis jogos, distribuídos ao longo de nove episódios, invocam tanto reality shows de TV –uma mistura de “Survivor” com armas de fogo– quanto os prazeres mais puramente cinéticos dos esportes e dos esportes eletrônicos televisados.

Mas do que trata “Round 6”? Se você deixa de lado os ornamentos e a ação, uma coisa fácil de perceber é que se trata de uma história absolutamente tradicional, e completamente previsível, um melodrama típico que gira em torno dos conflitos e dos afetos de pessoas forçadas a conviver.

O grupo central de participantes do jogo parece ter saído diretamente do manual de Hollywood sobre como fazer filmes de guerra –o líder forte e silencioso, o outsider de humor instável, o valentão abrutalhado, o cara mais velho e amável e o observador ingênuo e gentil que serve como sucedâneo da audiência.

Eles são os nossos cinco valentes, ou por aí, e seu progresso pela história não traz qualquer surpresa. Morrem exatamente na ordem que seria de esperar, com base na importância de cada um para a mecânica da trama.

Esse tipo de previsibilidade é praticamente um tema em “Round 6”, e a tal ponto que parece intencional. A identidade do “game master” mascarado conhecido como Front Man fica evidente por boa parte da temporada, embora devesse ser um mistério. A decisão de não mostrar na tela a morte de um personagem particularmente simpático, incomum em uma série que enfatiza cenas de morte tediosamente explícitas, é um sinal claro de que a pessoa vai reaparecer. O defeito na estrutura do jogo de bolas de gude –um recurso narrativo que tanto ajuda a tornar o sexto episódio absurda e vergonhosamente manipulativo quanto a fazer dele um dos preferidos da audiência e da crítica— é algo que podemos perceber com muita facilidade.

O visual impressionante, o atrativo visceral dos jogos, o apelo dos elementos de ficção científica e mistério e a reconfortante familiaridade das formas narrativas mais que repetitivas contribuem, todos, para a popularidade de “Round 6”, tenho certeza. (Dada a relutância da Netflix de revelar números sobre sua audiência, o número real de espectadores do programa é um mistério maior do que qualquer dos mistérios da série.)

Mas o que provavelmente a transformou em um sucesso tão grande é o aspecto do programa que mais me faz desgostar dele –sua pretensa relevância social contemporânea, uma fina camada de pertinência cujo objetivo é só justificar a carnificina incansável que é o elemento mais conspícuo da obra.

Os participantes do jogo –um operário automobilístico desempregado, um refugiado norte-coreano, um investidor fraudulento– são todos devedores, cujas fraquezas e circunstâncias os tornam desesperados o bastante para tomar parte dos cenários de matar ou morrer propostos pelos criadores do jogo, jamais vistos, mas presumivelmente autocráticos. (A recompensa potencial, que vai se acumulando em uma esfera de vidro enquanto os participantes vão sendo eliminados, é de dezenas de milhões de dólares.)

A estrutura proposta é um comentário sobre a rígida estratificação de classes na Coreia do Sul e uma alegoria bastante evidente –pessoas que saíram derrotadas do jogo manipulado da economia sul-coreana têm a oportunidade de vencer na arena (supostamente) mais igualitária e meritocrática do “Round 6”, mas sob o risco de morte quase garantida.

No entanto, existe uma diferença entre se referir a uma coisa e de fato iluminar essa coisa, ou a usar como base de um drama autenticamente humano. “Round 6” nada tem a dizer sobre desigualdade e livre arbítrio além de uma sucessão de truísmos tediosos, e seus personagens são composições rasas de clichês de família e guerra, que interagem com base em uma premissa patentemente ridícula. (Os integrantes do elenco, liderado pelos astros sul-coreanos Lee Jung-jae e Park Hae-soo, se esforçam valentemente e com algum sucesso para dar pelo menos um traço de emoção aos personagens.)

O objetivo da série, e ele é bem comum no momento, é o de conquistar as graças da audiência ao confirmar as ideias que esta já aceita. Como outro sucesso sul-coreano recente, “Parasita”, que valeu a Bong Joon Ho o Oscar de melhor filme, a série o faz, e com espaço de sobra.

E o que isso de fato realiza é oferecer cobertura à violência gratuita, que é mais do que um pouco enjoativa, em termos de escala, de apresentação explícita e de calculismo. Muito antes que o herói, Gi-hun, papel de Lee, comece o jogo da rodada final da série, no último episódio, com a mão perfurada por uma faca, eu já tinha desistido.

Os defensores de “Round 6” podem argumentar que a combinação de eficiência e rapidez na morte dos eliminados com os exageros dignos de uma história em quadrinhos tem ressonância estética e temática, mas nada que se vê na tela sustenta essa interpretação. Há pouco pavor e ainda menos emoção –temos só a satisfação logística de contar os mortos.

O diretor e roteirista de “Round 6”, Hwang Dong-hyuk, vem do cinema (“The Fortress”, “Silenced”) e está fazendo sua estreia na TV. Ele e sua equipe de câmera mantêm a história legível e as imagens bem compostas, de maneira rotineira, e encenam a ação com competência entediante. Mas Dong-hyuk não tem um estilo distintivo, o que se torna especialmente perceptível porque a série é um retorno a uma geração um pouquinho anterior de filmes sul-coreanos, de realizadores como Park Chan-wook e Kim Ki-duk, cuja ousadia estilística e humor mordaz permitiam que fizessem da violência exagerada um elemento orgânico em suas histórias. Já em “Round 6”, ela não passa de calorias vazias e sangrentas.

Tradução de Paulo Migliacci

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