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Liudmila Ulítskaia, que não venceu o Nobel, escreve para nunca esquecer a infância

'Meninas', primeiro livro no país da russa sempre na bolsa de apostas do prêmio, conta como era ser criança sob Stalin

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São Paulo

Mesmo dizendo ter memória ruim, a escritora russa Liudmila Ulítskaia, de 78 anos, lembra bem o dia de março de 1953 quando o rádio anunciou a doença de Josef Stálin, que morreria pouco depois. "Eu, uma menina frívola de dez anos, soltei em voz alta 'deve ser uma gripe ou um resfriado, e eles saem divulgando para o país inteiro'. Mamãe deu um puxão tão forte na minha trança que eu rangi os dentes. 'Calada!'”, conta, em entrevista por email, a mulher que há anos frequenta o topo das listas de apostas para o Nobel de Literatura.

A cena poderia estar narrada em "Meninas", primeiro livro dela publicado no Brasil, lançado neste mês pela editora 34 com tradução do russo por Irineu Franco Perpetuo. A obra costura seis breves narrativas sobre a infância na Moscou de fins dos anos 1940 e início dos 1950. “Eu tinha dez anos de idade e, para mim, a época stalinista se resume aos sussurros dos adultos e à relutância deles em conversar sobre coisas importantes na frente de nós, crianças”, diz Ulítskaia, que nasceu em 1943.

Isso significa que ela não tem recordações do pior da Segunda Guerra Mundial, a Grande Guerra Patriótica para os soviéticos. A invasão nazista em 1941, o quase assalto a Moscou e o cerco a Leningrado, além da fome e dos estupros em massa, são eventos que traumatizaram a mente soviética, mas quando Ulítskaia começa a formar sua própria memória, ela surge do trauma seguinte, a morte do camarada Stálin.

“A infância tem suas alegrias, a amizade dos nossos pares, as brigas, os jogos e segredos compartilhados. Na vida em família havia zonas de silêncio, não se falava de certas coisas na frente das crianças. Mas as crianças são muito sensíveis ao estado de ânimo dos adultos, e o sentimento de medo que os nossos pais experimentaram foi transferido para nós.”

Desse caldo de memória emerge um livro delicado, divertido, leve, mas também grave, que dialoga com as obras de sua xará, contemporânea e conterrânea, Liudmila Petruchévskaia ­–que tem publicados no Brasil “Era uma Vez uma Mulher que Tentou Matar o Bebê da Vizinha” e “A Menininha do Hotel Metropol”.

A escritora russa Liudmila Ulítskaia durante encontro com leitores em Moscou
A escritora russa Liudmila Ulítskaia durante encontro com leitores em Moscou - Divulgação

Todas as protagonistas de “Meninas” são garotas de nove a 11 anos, quando o mundo infantil pode ganhar contornos de seriedade, mas ainda não se deu o desembarque na puberdade e nas descobertas irreversíveis dessa época.

Na cabeça da autora, segundo a própria, não está “de modo algum o desejo de contar alguma coisa para quem quer que seja”. “É antes o desejo de guardar para mim. Minha memória é ruim, desde cedo tenho o hábito de escrever todo tipo de acontecimento marcante. Muitos anos tiveram de se passar até que eu percebesse que os meus textos tinham o direito de ser publicados. Foi só aos 50 anos de idade que o meu primeiro livro, uma coletânea de contos, veio a público. Até então, não tinha coragem de publicar nada.”

Ulítskaia é dona de uma biografia improvável. Sua origem judaica foi um obstáculo à admissão na Universidade Estatal de Moscou, mas em 1962 ela conseguiu ser aceita depois de tentar três vezes em dois anos.

Geneticista de formação, ela trabalhava em um laboratório até ser detida pela KGB, a polícia secreta soviética. O motivo? Ela havia pagado uma colega para datilografar uma tradução clandestina de “Exodus”, romance do americano Leon Uris sobre a criação de Israel. Ulítskaia perdeu o emprego e nunca mais atuou nessa área.

Algo parecido ocorre com um dos protagonistas de "A Grande Tenda Verde", romance que também lida com a juventude —um pouco mais crescida— logo após a morte de Stálin e se espraia até os anos 1970. A tradução brasileira está prevista para o ano que vem, também pela 34.

Publicado originalmente em 2002, “Meninas” foi escrito na passagem dos anos 1980 para os 1990, período de um novo trauma para os soviéticos. O império se esfacelava, as crises políticas e econômicas se sucediam e não se sabia em que país se acordaria no dia seguinte.

Como foi escrever um livro sobre a infância stalinista em meio à abertura promovida por Mikhail Gorbatchov que custou a própria existência da União Soviética? Bom, a própria abertura pode ser um conceito relativo, diz Ulítskaia.

“Para minha grande tristeza, eu nunca vivi sob um governo que me agradasse. Mesmo Gorbatchov só pôde ser avaliado positivamente nos tempos atuais, depois de completado um longo percurso", ressalta ela.

"Mas eu me lembro da política de repressão na Geórgia e nos países bálticos, promovida por Gorbatchov. E aquilo não tinha como me agradar. A época da perestroika e da glasnost de modo algum me pareciam ser bons tempos. Aqueles que discordassem tinham de encarar uma grande pressão, e eram justamente esses os meus amigos.”

Isso, é claro, evoca a Rússia de hoje, que tem como face do poder a mesma figura desde 1999 –o rosto de Vladimir Putin.

“Me parece que na Rússia nunca se viveu tão bem como nos últimos anos. Muitos vão discordar de mim. Essa melhoria da vida na Rússia, segundo me parece, resulta de uma tendência universal à humanização da vida” diz Ulítskaia.

“Na Rússia stalinista havia milhões de pessoas na prisão. Nos nossos tempos, são cerca de 600 mil, aproximadamente o mesmo número que nos Estados Unidos. E os prisioneiros políticos, de acordo com relatórios da Associação Memorial, de Moscou, são cerca de 500 pessoas. Isso nem se compara aos milhões que Stálin enviou aos campos de trabalho. É um progresso, devemos admitir.”

O que não significa que ela concorde com o tratamento dado a Alexei Navalni, principal opositor de Putin que está preso desde janeiro, quando retornou ao país após ser envenenado na Sibéria e levado para tratamento na Alemanha. Ele acusa o líder russo de mandar assassinar o opositor, algo que o Kremlin nega.

Ulítskaia também enxerga uma mão mais leve no trato com os escritores e uma literatura russa que já não exibe a potência dos dias de Tolstói, Dostoiévski e Tchekhov. “Tenho a impressão de que o governo se interessa muito pouco pela literatura, a censura das obras de ficção é muito leve, débil, nem se compara à censura dos tempos de Brejnev e Khruschov. Talvez porque a literatura já não tem a importância cultural que tradicionalmente teve na Rússia, desde o século 19 até o final do 20.”

Há anos cotada para o Nobel, a autora de 11 romances, dez volumes de contos e mãe de dois filhos disse ter ficado surpresa –mas honrada– quando ouviu pela primeira vez seu nome entre as apostas para o prêmio. “Liguei para um amigo que estava vindo jantar conosco e pedi que ele trouxesse uma garrafa de vinho."

Meninas

  • Preço R$ 49 (168 págs.)
  • Autoria Liudmila Ulítskaia
  • Editora 34
  • Tradução Irineu Franco Perpetuo
Capa de "Meninas", de Liudmila Ulítskaia, publicado no Brasil pela editora 34
Capa de "Meninas", de Liudmila Ulítskaia, publicado no Brasil pela editora 34 - Divulgação
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