Descrição de chapéu

Clarice Lispector ganha mostra em tudo original e que respeita sua obra

Em cartaz no IMS, 'Constelação Clarice' visa aproximar literatura e artes plásticas com palavras da escritora

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Noemi Jaffe

Escritora, criadora do centro cultural literário Escrevedeira e crítica literária. Autora de "A Verdadeira História do Alfabeto" (Companhia das Letras), vencedor do prêmio Brasília de Literatura, e "O que os Cegos Estão Sonhando?" (Editora 34), entre outros livros

Um dos aspectos mais importantes da literatura de Clarice Lispector é sua forma informe. São obras que oscilam (Clarice gostava de usar verbos assim, intransitivamente). Oscilam entre a linha e a entrelinha, entre a vida e a ficção, entre o transcendente e o imanente, entre ser o que não se é e não ser o que se é, entre o compreensível e o absurdo, entre a palavra e as coisas.

Sua linguagem —metafórica, tantas vezes esdrúxula, combinando substantivos e adjetivos de formas inesperadas, duvidando de si mesma, transitando entre o onírico e a rotina de donas de casa— em tudo coincide com o objeto de que fala, alcançando assim um dos maiores objetivos de qualquer escritor. Fazer coincidir matéria e linguagem, em literatura, é diminuir o abismo que separa as palavras das coisas e, com isso, atingir o grau máximo de expressividade da palavra, coisa que vem se perdendo cada vez mais.

Podemos dizer que o mesmo acontece com a exposição "Constelação Clarice", que está no Instituto Moreira Salles até fevereiro de 2022, organizada pelos escritores Veronica Stigger e Eucanaã Ferraz. É uma exposição em tudo original e autoral, mas que, ainda assim, respeita completamente a verdade da obra de Clarice.

A ideia de "constelação", aplicada à autora, acontece na própria forma como a exposição está montada e a "forma informe" de Clarice se repete na expografia e no conteúdo do que está exposto. A ideia geral é aproximar a literatura das artes plásticas, criando uma espécie de árvore associativa, em que vemos se aproximarem Djanira de Mira Schendel, Maria Martins de Eleonore Koch, a impressionante Celeida Tostes de Iole de Freitas, Fayga Ostrower de Claudia Andujar, tudo mediado circularmente pelas palavras de Clarice.

A disposição das salas permite que o espectador, participante, decida por onde quer circular e quais combinações quer privilegiar, também o expondo ao acaso das descobertas e surpresas. Ele passa a fazer parte dessa proposta de constelação, reunindo frases e obras plásticas da forma informe que melhor lhe aprouver.

São nove núcleos, baseados em nove linhas de força clariceanas, a origem, o desajuste, a animalidade, a casa, o plasma, a escrita, o sobrenatural, a alteridade, o fim —todas elas em estado combinatório e representadas por frases retiradas de diferentes obras da autora e por obras de arte feitas por artistas mulheres brasileiras.

Clarice conheceu e conviveu com algumas delas, como Fayga Ostrower, Maria Bonomi e Maria Martins e outras não se sabe se chegou a conhecer. Uma das maiores surpresas da exposição são justamente as pinturas de Clarice, realizadas na década de 1970 e que a autora descreve como uma prática pura e livre, que ela não tinha a intenção de mostrar a ninguém e que fazia tão mal que chegava a gostar delas exatamente por isso.

São explosões nervosas de tinta, uma delas feita com esmalte vermelho, onde se pode reconhecer os motivos da ameba, da gruta e, novamente, do informe, aquilo que ainda não nasceu, o que está por nascer, o que vem antes do antes. "Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?"

Em duas salas separadas, nos dois andares que a exposição ocupa, podemos ver documentos, fotos, manuscritos, os quadros que Clarice mantinha, seus retratos feitos por pintores, suas máquinas de escrever e a entrevista famosa dada a Julio Lerner na TV Cultura alguns meses antes de sua morte. É um intervalo mais informativo e necessário, durante uma visita que em tudo sugere uma jornada introspectiva e criativa.

Ao fundo dos dois espaços vemos um grande painel, onde se apresenta a proposta de constelação e onde se leem os nomes de todas as artistas participantes e sua relação de maior ou menor distância da autora. Assim como Mallarmé, que, em "Um lance de Dados", propõe um livro-constelação, em que os elementos compositivos podem se encontrar e desencontrar de forma renovada a cada leitura e em que as palavras não seguem as convenções tipográficas e narrativas, também "Constelação Clarice" leva o espectador a um passeio ativo mas também passivo, em que somos não somente sujeitos, mas também objetos da obra clariceana. "Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando."

Constelação Clarice

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